26 de dezembro de 2007

ESCUTATÓRIA






ESCUTATÓRIA


RUBEM ALVES


Sempre vejo anunciados cursos de oratória. Nunca vi anunciado curso de escutatória. Todo mundo quer aprender a falar. Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória.

Mas acho que ninguém vai se matricular. Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores. É preciso também não ter filosofia nenhuma". Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas. Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia.

Parafraseio o Alberto Caeiro:
"Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma".

Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer. Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela eevolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios. Reunidos os participantes, ninguém fala. Há um longo, longo silêncio. (Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, abrindo vazios de silêncio, expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem.Terminada a fala, novo silêncio. Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos. É preciso tempo para entender o que o outro falou. Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades:

Primeira:"Fiquei em silêncio só por delicadeza. Na verdade, não ouvi o que você falou. Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala. Falo como se você não tivesse falado";

Segunda:"Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo.É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou".Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo. O que é pior que uma bofetada. O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou".

E assim vai a reunião. Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia. Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras. A música acontece no silêncio.

A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos.

Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar. Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio.

Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também. Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.


http://www.velhosamigos.com.br/Colaboradores/Diversos/rubemalves3.html

Carl Gustav Jung





OS BRANCOS SÃO LOUCOS


Em sua viagem ao Novo México para ver os índios pueblos, Jung teve uma conversa com um de seus chefes, Ochwiay Biano (Lago da Montanha), que lhe permitiu compreender algumas coisas. Os dois estavam sentados no alto terraço que cobria a casa do índio, e olhavam o Sol brilhante subir lentamente no céu. Após um longo silêncio, Lago da Montanha tirou seu cachimbo da boca, olhou Jung no fundo dos olhos e, abanando a cabeça, lhe disse:

- "Os brancos são cruéis. Veja como os brancos têm um ar cruel. Seus lábios são finos, seus narizes pontiagudos, suas faces lavradas de rugas. Seus olhos são fixos: têm sempre o ar de estar procurando alguma coisa. O que eles procuram? Os brancos estão sempre insatisfeitos, agitados. Nós não sabemos o que eles querem. Não os compreendemos. Nós pensamos que eles são loucos".

- "Os brancos são loucos? Mas por quê?" - Perguntou Jung.

- "Eles dizem que pensam com suas cabeças"- Respondeu Lago da Montanha.
- "Sim, naturalmente", afirmou Jung surpreso. "Com o que pensam os índios"?
- "Nós pensamos aqui, disse Lago da Montanha, mostrando o coração".


Jung foi atingido por outra resposta. Afinal, saber meditar, saber se calar, saber se fundir com a natureza, tudo isto também permite ao homem enriquecer. Certamente, o índio não era menos rico que aquele homem de negócios que havia sido bem sucedido em sua vida material e acreditava ter vencido o mundo, mas que não possuía vida.


Citado em Planeta, da obra “MEMÓRIAS, SONHOS E REFLEXÕES”, de Carl Gustav
Jung

19 de dezembro de 2007

HOTEL 5 ESTRELAS *****








HOTEL 5 ESTRELAS *****

Uma amiga, fez sua primeira viagem aos EUA. Tudo era novidade! Hospedou-se num tremendo cinco estrelas. O Plaza Hilton!

Ao chegar em sua suíte foi fazer um pipizinho.

Estava apertada. Sentou naquele luxuoso banheiro e, ao terminar, notou que faltava papel higiênico! Muito puta, de dentro do banheiro mesmo, interfonou para a recepcionista bilingüe:

- Minha filha...que absurdo! Um hotel dessa categoria sem papel higiênico?

- Desculpe senhora, não usamos mais esse tipo de material em nossos hotéis...

Senhora, veja o painel a seu lado.Aperte o primeiro botão à sua esquerda.

Ana, curiosa seguiu as instruções. Imediatamente um jatinho delicioso de água morna foi esguichado em sua perereca!

- Senhora, agora aperte o segundo botão, ao lado do primeiro. Imediatamente, um ventinho quente rapidamente secou sua perseguidinha!

- Que maravilha, falou Ana.

- Espere senhora. Por favor agora aperte o terceiro botão. Ana apertou, e sentiu uma borrifada de um delicioso perfume francês ser lançado entre suas pernas! Maravilhada com aquela tecnologia, Ana não se conteve e exclamou: - c a a a r a a a l h o !

E a solícita recepcionista bilingüe imediatamente respondeu:

- É no botão vermelho, senhora. Queira, por gentileza, especificar o comprimento e a espessura!!!

Rir é o melhor remédia, a vida sem humor não tem graça!

BARBIE







A BARBIE


(de Rubem Alves, em Teologia do Cotidiano)

Fiquei comovido quando li que foram encontradas bonecas em túmulos de crianças no Egito, na Grécia e em Roma. Pude imaginar o que os pais deveriam estar sentindo ao colocar aquele brinquedo junto ao corpo da filha morta.

Eles o faziam para que ela não partisse sozinha, para que ela não tivesse medo...De fato, uma criança abraçada a uma boneca é uma criança sem medo, uma criança feliz.

Os meninos, proibidos de ter bonecas, se abraçam aos seus ursinhos de pelúcia. E nós, adultos, proibidos de ter bonecas e de ter ursinhos de pelúcia, nos abraçamos ao travesseiro... Os objetos são diferentes, mas o seu sentido é o mesmo: o desejo de aconchego e de ternura. (...)

>>> continua>>>

Leia na integra

9 de dezembro de 2007

Variedades

Nosso olhar é tudo...

"Uma decepção pode diminuir o tamanho de um amor que parecia ser grande.
Uma ausência pode aumentar o tamanho de um amor que parecia ser ínfimo.
É difícil conviver com esta elasticidade: As pessoas se agigantam e se encolhem aos nossos olhos. Nosso julgamento é feito não através de centímetros e metros, mas de ações e reações, de expectativas e frustrações. Não é a altura, nem o peso, nem os músculos que tornam uma pessoa grande... é a sua sensibilidade, sem tamanho!"


(Fernando Pessoa)

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Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho
E chore, se arrependa
E pense muito
Que é melhor se sofrer junto
Que viver feliz sozinho

Tomara
Que a tristeza te convença
Que a saudade não compensa
E que a ausência não dá paz
E o verdadeiro amor de quem se ama
Tece a mesma antiga trama
Que não se desfaz

E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais...

Vinícius de Moraes

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Mulher, berço da vida


Onde reside o amor
Pelos filhos és tão querida
E por eles luta com rigor

Mulher, tu és uma fortaleza
Capaz de atos de bravura
Tens em ti toda beleza
Revelada em gestos de grandeza

Mulher, entrega-te ao ser amado
Sem mais nada desejar
Cobri-lhe de amor e carinho
E só nele consegue pensar.

Mulher, vibras de amor e emoção
Outras vezes briga e nega teu perdão
E logo em seguida ofereces sorrindo,
Embrulhado em sorrisos, teu coração.

Mulher, assim fostes criada
Para ser amiga e companheira
Por muitos poetas imaginada
Como flor em bela jardineira.


Rosinha Barroso

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Descubra-me!

Não sou menina...
Não sou mulher...
Sou misto de ambas...
na dose certa da tua paixão!
O que me define não é o que eu sou...
mas o que teu toque me faz sentir...
É tua paixão que faz a minha sede...
É tua voz que desperta o que há de mais secreto em mim...
É tua sedução que me transformará...
É teu cheiro que me dá ânsia de amar
e de sentir o gozo de ser possuída...
Se não puderes alcançar-me,
jamais descobrirás quem eu sou ...
E serei apenas fruto de tua imaginação
nas tuas noites solitárias...

Anjo Azul

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Eu não sou simples, ao contrário, sou complexa, paradoxal...
Eu não sou mulher que se possa guardar num cofre
e nem aprisionada por sentimentos que não sejam os meus.

Para me conhecer...
olhe o movimento das ondas do mar,
o barulho do vento nas folhas das árvores.

Para me seduzir...
não me peça pra calar quando quero cantar,
falar quando quero apenas olhar a vida e refletir em silêncio.

Não me peça para parar de sorrir ou de chorar.
Não estranhe quando eu sentir vontade de
abrir minhas asas e voar em direção à rua
ou mergulhar nas águas de uma cachoeira.

Para me possuir...
não tente me segurar quando preciso ir.
Deixe-me livre.

Porque só me sendo minha, poderei ser tua...

(a.d)

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Diferenças entre homens e mulheres...

http://www.bozzetto.com/flash/fem_male.htm

Demora um pouco para abrir....mas vale a pena...

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Os editores da Revista Super interessante, em um gesto incomum, liberaram, para leitura e consulta, o conteúdo das edições de 1988 a 2006.
http://super.abril.com.br/super2/superarquivo/

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A vida é um grande teatro.
Aqui sou como sou antes de entrar em cena.
Sem maquiagem.
Sem figurino.
Sem censuras.
Me relato.
Me delato.

Tem horas que não adianta enxergar,
é preciso ver.
tem horas que não adianta ver,
é preciso enxergar.
e tem horas que é preciso ver e enxergar...

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Desejo

Tenho fome da tua boca, da tua voz, teus cabelos
e pelas ruas vou sem me nutrir, calado,
não me sustenta o pão, a aurora me desconcerta,
procuro o líquido som de teus pés pelo dia.
Faminto estou de teu sorriso resvelado,
de tuas mãos cor de furioso celeiro,
tenho fome da pálida pedra de tuas unhas,
quero comer tua pele como intacta amêndoa.

(Pablo Neruda)

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A socióloga Paula Silveira disponibilizou na plataforma Pluridoc uma reflexão sobre o conceito e a prática de Educação Ambiental, na qual defende que educar para as questões ambientais não é convencer ou persuadir mas o mesmo que ensinar/aprender a ler e a escrever, discutindo novas metodologias de intervenção social junto dos cidadãos.

Esta reflexão intitula-se "Educação Ambiental, Como Fazer?", foi disponibilizada em Português e em Inglês, e os interessados poderão descarregar gratuitamente estes documentos a partir dos seguintes links:

- "Educação Ambiental, como fazer?"
http://www.pluridoc.com/Site/FrontOffice/default.aspx?Module=Files/FileDescription&ID=1496&lang=pt

- "Environmental Education, how to do it?"
http://www.pluridoc.com/Site/FrontOffice/default.aspx?Module=Files/FileDescription&ID=1503&lang=pt

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8 de dezembro de 2007

Comportamento Virtual



A fantasia e o baile de máscaras

Claudia Cruz Lanzarin*



Neste trabalho, pretendo estudar um modo de uso muito específico da Internet. Chamarei aqui de relações virtuais os vínculos, mesmo que efêmeros, que se estabelecem nos chats entre sujeitos que supostamente não se conhecem fora do ciberespaço. Nestas formas de relacionamento a adoção de um pseudônimo ou mesmo a construção de uma ou mais personagens são freqüentes.Tentarei, no texto, estabelecer algumas relações entre a produção subjetiva (personagem construída) e o conceito psicanalítico de fantasia.

Seriam os chats os Bailes de Máscaras do Final deste milênio? Que tipo de relações possibilitam? Por que exercem tanto fascínio sobre os participantes? Qual o sentido da personagem construída para se apresentar aos outros? Estas são algumas das questões que serviram como provocação para a escrita deste texto.

Nos bailes medievais, damas e cavalheiros, no anonimato garantido pelas vestes festivas, abandonavam-se a toda sorte de extravagâncias, a tudo o que não seria permitido se identificados estivessem. Nas relações virtuais, consideradas aqui como aquelas formas de relacionamento que prescindem da presença física dos participantes, só é possível conhecer o outro a partir daquilo que sua mensagem comunica. Logo, a Rede, assim como o baile de máscaras, possibilita aos internautas o anonimato.





A máscara, metáfora do anonimato, impede o olhar social que reconhece e amarra cada um ao seu próprio lugar, à sua própria identidade e ao que dela se espera. A suspensão do olhar social/censura, prática analítica e confessional, autoriza a fala do indizível. Faz surgir uma outra palavra, uma outra ação e, por que não dizer, os outros habitantes de nossa subjetividade.

Para Guattari (1986) e Rolnik (1993), a subjetividade não tem uma essência, nem sequer uma forma definida. Podemos pensar que ela se assemelha a uma duna de areia que se movimenta e se deixa esculpir pelo sopro dos ventos. Escultura mutante no/do tempo, que se realiza no jogo interminável de construção/desconstrução. Como não é dada aos homens pela natureza se constrói no campo social e histórico.

Nessa perspectiva, a subjetividade não se apresenta centrada na noção de um núcleo, de um eixo. Não pode ser reduzida a estrutura egóica. Ela é o devir. Podemos utilizar a metáfora do rizoma de Guattari e Deleuze (1995) para explicá-la. O rizoma, assim como a subjetividade, não tem um tronco por ser semelhante a uma raiz, não define um começo nem uma conclusão, acontece no meio, no entre, nas possibilidades. Também para Lacan (1975) o ego é uma ficção, uma ilusão. Freud (1920/1987) ao definir o ego como sendo a instância resultante de inúmeras identificações, formada na sua maior parte por aspectos inconscientes, relativiza a noção de unidade, de coerência deste pólo da personalidade.

A partir deste recorte teórico, as nossas fantasias, as outras formas de ser: mulher e homem, de sentir a sexualidade e a vida podem ser consideradas como sendo os outros habitantes de nossa subjetividade. Estes, por vezes, vivem amordaçados pela auto-censura, pelas normas sociais e pelos ideais identificatórios modelizantes oferecidos pela cultura.

Deleuze e Guattari (1995) utilizam-se de outra imagem, proposta por Artaud, para dar conta do conceito de subjetividade, a do corpo sem órgãos, figura mítica da desessência, “lugar” de atualização de todas as possíveis formas de subjetivação. Obviamente, fora do campo conceitual, é impossível pensar num sujeito sem órgãos, epistêmico. Estar no mundo implica possuir marcas: de uma filiação, de um nome, de uma classe social, de raça, de gênero, entre outras. Estes componentes de diferentes intensidades se sobrepõem, se enlaçam, se combinam e, nestas movimentações, vão compondo o mosaico da existência.





Viver numa sociedade capitalista, desigual e individualista, que busca normatizar, controlar e tutelar o dissidente, a originalidade, não é tarefa fácil. Esta sociedade oferece a todos os mesmos ideais de sucesso, de beleza e de consumo, porém dá a poucos condições materiais de concretizá-los. Por vezes, resta aos humanos buscar a satisfação de seus anseios, desejos, no sonho. Sonhar com um corpo sem órgãos, sem marcas, sonhar, inclusive, com a realização dos ideais identificatórios, por que afinal nem sempre o sonho é singular, no sentido de prescindir totalmente dos modelos da cultura.

O sonho diurno, ou devaneio, que Freud (1908/1987) denominou, com tanta propriedade, de fantasia pode ser um conceito de extrema relevância para pensar as relações virtuais, estabelecidas entre os habitantes do ciberespaço, nos chats de conversação. Nestas relações não presentificadas e, portanto, anônimas, a adoção de um pseudônimo ou mesmo a construção de uma ou mais personagens para se comunicar com os outros são freqüentes. Algumas personagens são utilizadas durante anos e costumam ser encontrados com regularidade em chats específicos.

O leitor mais atento poderia, a essa altura do texto, argumentar que a construção de personagens também pode ocorrer nas relações presenciais. Rolnik (1993), inclusive, escreve sobre as identidades prêt-à-porter oferecidas pela mídia para consumo imediato. Sendo assim, por que este trabalho se restringe ao estudo das relações virtuais? Em que elas diferem das demais formas de relação? Em primeiro lugar, penso que a adoção de personagens no mundo virtual é de outra natureza, já que no ciberespaço o internauta tem total liberdade1 para construir a imagem com a qual deseja se apresentar. Esta imagem poderá estar desvinculada da realidade do organismo. Torna-se possível, graças a acorporeidade, modificar o gênero, a idade, os atributos físicos, o nome, entre outras características. Em segundo lugar, existe uma consciente intencionalidade na adoção da personagem, mesmo que as escolhas realizadas sejam determinadas por forças inconscientes.

Turkle (1997), psicanalista americana, considera as personagens adotadas como prova contundente da multiplicidade do self. Para ela, as diferentes identidades assumidas pelos internautas exemplificam de forma magistral esta noção, defendida pelos teóricos franceses pós-modernos, de um self múltiplo, fluido, não linear e que se constitui na interação. Em contraposição a estas idéias encontramos alguns estudiosos que chegam a classificar o mesmo fenômeno como uma manifestação patológica de uma personalidade múltipla.

A primeira abordagem do tema não parece ser suficiente para explicá-lo, porque a ausência de unidade do ego, teorizada por Freud (1920/1987), é uma condição que atravessa as relações entre os sujeitos sejam elas presenciais ou não. Portanto, se a multiplicidade do ego ou self é inerente a condição humana a argumentação defendida por Turkle (1997) não dá conta da complexidade das relações virtuais. A segunda posição teórica tenta catalogar um fenômeno que é completamente novo nos velhos manuais de nosografia psiquiátrica. Talvez pudéssemos tomar esta produção subjetiva (personagem construída) a partir do conceito psicanalítico de devaneio, já que a possibilidade de brincar de ser outro é o que parece estar em questão.

Para Freud (1908/1987), a capacidade imaginativa tem estreita vinculação com o jogo infantil. O devaneio “... é uma continuação, ou substituto, do que foi o brincar . . .” (Freud, 1908/1987, IX, p. 157) “. A criança em crescimento, quando pára de brincar, só abdica do elo com os objetos reais, em vez de brincar, ela agora fantasia. Constrói castelos no ar e cria o que chamamos de devaneio” (Freud, 1908/1987, IX, p.151). Porém, “... a possibilidade de fantasiar não é dada a todas as pessoas de maneira idêntica ...” (Dejours, 1988, p. 44). Pál Pelbart (1993) nos mostra, com tanta sabedoria, que para entrar num devir-anjo é preciso ter desejo de asas.

As fantasias são motivadas pelas frustrações impostas pela vida cotidiana. Como no sonho, a fantasia expressa a realização de um desejo. Procura fornecer ao sujeito uma satisfação independente da realidade2 . Conforme Kusnetzoff (1982), a fantasia é a cenarização imaginária que representa, deformada, a realização de um desejo. Freud (1908/1987) chama a atenção para o fato de que os homens adultos envergonham-se de suas fantasias e dificilmente conseguem revelá-las fora de alguma situação terapêutica.

A fantasia, assim como o sonho, o lapso, o sintoma e os atos falhos, é uma produção do inconsciente, logo obedece a uma lógica de funcionamento que não é determinada pela racionalidade nem pelo tempo cronológico. Por meio dela nos conectamos com uma outra temporalidade, que os gregos chamavam de aion. Na Grécia Antiga já se reconhecia a existência de diferentes tempos: o chronos, nome escolhido para designar o “... tempo da lei, da repetição ordenada, da determinação, do encadeamento lógico ou cronológico entre o antes e o depois...” (Gondar, 1995, p. 83) e aion, que é o tempo de criação, liberto do aprisionamento da ordem e que possibilita o devir.



Gondar (1995), a partir destes conceitos de tempo, estuda a metapsicologia freudiana e nos demonstra que a atemporalidade do inconsciente, postulada por Freud (1915/1987), é a negação de um tempo em específico: o chronos. Na fantasia, o aion, que se insubordina à ordenação, faz coexistir o passado, o presente e o futuro. Para Freud (1908/1987), estes três momentos do tempo se encontram enlaçados no devaneio por um fio condutor: o desejo. No psiquismo, a conexão de uma experiência passada com uma situação atual produz o novo ( o por vir) que está a serviço do desejo.

Freud (1908/1987) traça um paralelo entre o devaneio e a criação poética. Ambas aquisições têm sua origem no jogo infantil. Para ele, o escritor criativo ao produzir sua obra literária encontra-se imerso na mesma lógica, descrita acima, de construção do devaneio.“Uma poderosa experiência no presente desperta no escritor criativo uma lembrança de uma experiência anterior (geralmente de sua infância), da qual se origina então um desejo que encontra realização na obra criativa” ( Freud, 1908/1987, vol. IX, p. 156).

Penso que a Rede exerce fascínio sobre as pessoas justamente porque instaura uma nova forma de relação do sujeito com sua fantasia.

Esta deixa de ser vivida no silêncio da imaginação e passa a ser compartilhada socialmente, para além dos consultórios psi. A Rede, espaço lúdico de puro exercício da criatividade, é o meio pelo qual podemos dar asas à imaginação, onde é possível brincar com a possibilidade de ter um corpo sem órgãos, liberto das determinações (de gênero, raça, classe). A acorporeidade, característica destas relações virtuais, possibilita a criação, inclusive, de uma imagem corporal para cada personagem totalmente descolada da realidade do corpo. Esta imagem poderá ou não refletir os ideais identificatórios oferecidos pela cultura (ser jovem, branco, magro etc).

O internauta, quando constrói para si uma personagem, muitas vezes, dotada de atributos físicos e de uma história de vida, se aproxima da posição ocupada pelo escritor criativo. Porém, se diferencia do mesmo porque aqui sua produção subjetiva não é página morta de um livro, mas sim algo que se constrói em interação com muitas outras personagens.


Encontro: possibilidade ou impossibilidade?

Alguns estudiosos têm com freqüência denunciado as novas tecnologias como sendo as principais responsáveis pelo isolamento e pela solidão em que vivem os sujeitos no final deste milênio. Birman (1997), num recente texto sobre o filme Denise está chamando, de Hal Salwen, sintetiza esta posição: “A relação face to face não existe mais. As pessoas não podem mais se olhar, se tocar e se enternecer pela delicadeza brusca dos gestos” (Birman, 1997, p.217). Lévy (1996), contrário a esta proposição, afirma que as pessoas que mais utilizam as tecnologias de comunicação são também as que mais buscam o contato presencial.

Creio que as novas tecnologias da comunicação não excluem nem concorrem com as formas genuínas de contato humano. A solidão, o individualismo e a precariedade dos laços fraternos são questões inerentes a uma sociedade, que como a nossa, se organiza a partir do modo de produção capitalista.

Porém, é interessante observar que a interação, os amores e as amizades que se estabelecem entre as personagens do mundo virtual dificilmente conseguem ser transpostos para a realidade presencial. Esta afirmação, com certeza passível de questionamentos, nasce da observação despretensiosa dos relatos de inúmeros internautas. São comuns as histórias de encontros que não se realizaram ou pela ausência dos envolvidos ou porque, as pessoas não se deram a conhecer mesmo estando no local determinado. Que lógica estaria aí operando ? Como pensar estes fatos ? Como não tenho respostas, proponho algumas reflexões, que talvez possam nos indicar caminhos para pesquisa.

Antes de mais nada, é necessário retomar uma idéia que, de alguma forma, permeou este texto. É importante ressaltar que o virtual é realidade, mesmo que de outra ordem. A realidade virtual e a realidade presencial se diferenciam entre si quanto à natureza das experiências que oportunizam aos sujeitos que delas participam. Reconhecidas as diferenças entre os dois meios ou realidades, caberia perguntar: por que não é possível a transposição dos fenômenos que observamos nas relações virtuais para as presenciais ?

Como vimos em Freud (1908/1987), existe uma relação de continuidade entre o jogo infantil e a capacidade imaginativa. O jogo torna-se uma das vias de inserção da criança no plano simbólico. Também Winnicott (1975) ao construir sua teoria sobre o objeto transicional e os fenômenos transionais aponta para o fato de que esta área intermediária de experiência dará lugar na vida adulta ao viver imaginativo, ao trabalho científico criador, às artes e à religião. Este processo de continuidade demonstrado pelos autores se rompe quando pensamos na transposição das experiências vividas na realidade virtual para a presencial. Por que as relações virtuais não se constituem num agenciamento para os encontros presenciais ? Parece ser a grande questão. Por que não encontramos a continuidade entre as experiências virtuais e presenciais ?

Somente o processo de investigação poderá nos dar algumas respostas. Porém me atrevo a expor uma hipótese que posteriormente poderá ou não ser refutada. Não seria justamente o anonimato, a acorporeidade das relações virtuais que possibilitam o jogo da fantasia ? Se assim for, as relações virtuais, as quais me referi neste texto, só se mantêm enquanto o encontro for impossível. Dito de outra forma, creio que se tomarmos a fantasia como sustentáculo da construção das personagens no mundo virtual, a perda do anonimato e da acorporeidade que o mundo presencial impõe é o que impossibilita a transposição total das experiências. Evidentemente, algumas experiências devem ser levadas pelos sujeitos de uma realidade para outra, investigar quais são estas experiências talvez possa ser um desafio para as futuras pesquisas. Além disso, a subjetividade, como nos ensina Rolnik (1995), é algo que está em processo e que se modifica com transformações sociais e culturais. Logo, cabe também questionar: que novas formas de subjetivação a partir destas experiências estão sendo construídas ? Que efeitos trará para os sujeitos o exercício coletivo da fantasia ?



Referências bibliográficas

Birman, Joel (1997). Estilo e modernidade em psicanálise. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Dejours, C.(1988). A loucura do trabalho: estudo de psicopatologia do trabalho. São Paulo: Cortez-Oboré.
Freud, S. (1987). Escritores criativos e devaneio. In: Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1908)
Freud, S. (1987). Além do princípio de prazer. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1920)
Freud, S. (1987). O inconsciente. In: Edição Standart Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago (Originalmente publicado em 1915)
Gondar, J.(1995). A multiplicidade de tempos na metapsicologia. In: KATZ, C. S. (org.) Temporalidade e psicanálise. Petrópolis: Vozes.
Guattari, F. Deleuze, G. (1995). Mil platôs; capitalismo e esquizofrenia. Rio de Janeiro: Ed. 34.
Guattari, F. (1986). Micropolítica: cartografia do desejo. Petrópolis: Vozes.
Kusnetzoff, J.C. (1982). Introdução à psicopatologia psicanalítica. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
Lacan, J. (1975). Escritos II. México: Siglo XXI.
Lévy, P. (1996). O que é o virtual ? São Paulo: Ed. 34.
Pelbart, P. P. (1993). A nau do tempo-rei: sete ensaios sobre o tempo da loucura. Rio de Janeiro: Imago.
Rolnik, S. (1993). Subjetividade, ética e cultura nas práticas clínicas. Cadernos de Subjetividade. São Paulo, v. 1, n.1, 305-313.
Turkle, S. (1997). Life on the screen: identity in the age of the internet. New York: Touchstone.
Winnicott, D. W. (1975). O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago.


* Psicóloga e vice diretora de Ensino e Pesquisa do Hospital Psiquiátrico São Pedro. Mestranda em Psicologia Social e Institucional pela UFRGS.
1- As únicas restrições à capacidade criativa devem-se aos próprios limites do meio, já que a imagem deverá ser apresentada através da palavra escrita ou por meio de outros símbolos.
2 - A satisfação referida pelo autor é independente da realidade, por que ocorre no plano mental, na imaginação. É importante ressaltar que a fantasia, assim como o processo onírico, utiliza-se de elementos da realidade para se constituir.

http://pepsic.bvs-psi.org.br/pdf/pcp/v20n3/v20n3a06.pdf

4 de dezembro de 2007

Caio Fernando de Abreu








Na terra do coração passei o dia pensando - coração meu, meu coração. Pensei e pensei tanto que deixou de significar uma forma, um órgão, uma coisa. Ficou só com-cor, ação - repetido, invertido - ação, cor - sem sentido - couro, ação e não. Quis vê-lo, escapava. Batia e rebatia, escondido no peito. Então fechei os olhos, viajei. E como quem gira um caleidoscópio, vi:

Meu coração é um sapo rajado, viscoso e cansado, à espera do beijo prometido capaz de transformá-lo em príncipe.

Meu coração é um álbum de retratos tão antigos que suas faces mal se adivinham. Roídas de traça, amareladas de tempo, faces desfeitas, imóveis, cristalizadas em poses rígidas para o fotógrafo invisível. Este apertava os olhos quando sorria. Aquela tinha um jeito peculiar de inclinar a cabeça. Eu viro as folhas, o pó resta nos dedos, o vento sopra.

Meu coração é um mendigo mais faminto da rua mais miserável. Meu coração é um ideograma desenhado a tinta lavável em papel de seda onde caiu uma gota d’água. Olhado assim, de cima, pode ser Wu Wang, a Inocência. Mas tão manchado que talvez seja Ming I, o Obscurecimento da Luz. Ou qualquer um, ou qualquer outro: indecifrável.

Meu coração não tem forma, apenas som. Um noturno de Chopin (será o número 5?) em que Jim Morrison colocou uma letra falando em morte, desejo e desamparo, gravado por uma banda punk. Couro negro, prego e piano.

Meu coração é um bordel gótico em cujos quartos prostituem-se ninfetas decaídas, cafetões sensuais, deusas lésbicas, anões tarados, michês baratos, centauros gays e virgens loucas de todos os sexos.

Meu coração é um traço seco. Vertical, pós-moderno, coloridíssimo de neon, gravado em fundo preto. Puro artifício, definitivo.

Meu coração é um entardecer de verão, numa cidadezinha à beira-mar. A brisa sopra, saiu a primeira estrela. Há moças na janela, rapazes pela praça, tules violetas sobre os montes onde o sol se p6os. A lua cheia brotou do mar. Os apaixonados suspiram. E se apaixonam ainda mais.

Meu coração é um anjo de pedra de asa quebrada.

Meu coração é um bar de uma única mesa, debruçado sobre a qual um único bêbado bebe um único copo de bourbon, contemplado por um único garçom. Ao fundo, Tom Waits geme um único verso arranhado. Rouco, louco.Meu coração é um sorvete colorido de todas as cores, é saboroso de todos os sabores. Quem dele provar, será feliz para sempre.

Meu coração é uma sala inglesa com paredes cobertas por papel de florzinhas miúdas. Lareira acesa, poltronas fundas, macias, quadros com gramados verdes e casas pacíficas cobertas de hera. Sobre a renda branca da toalha de mesa, o chá repousa em porcelana da China. No livro aberto ao lado, alguém sublinhou um verso de Sylvia Plath: "Im too pure for you or anyone". Não há ninguém nessa sala de janelas fechadas.

Meu coração é um filme noir projetado num cinema de quinta categoria. A platéia joga pipoca na tela e vaia a história cheia de clichês.

Meu coração é um deserto nuclear varrido por ventos radiativos.

Meu coração é um cálice de cristal puríssimo transbordante de licor de strega. Flambado, dourado. Pode-se ter visões, anunciações, pressentimentos, ver rostos e paisagens dançando nessa chama azul de ouro.

Meu coração é o laboratório de um cientista louco varrido, criando sem parar Frankensteins monstruosos que sempre acabam destruindo tudo.

Meu coração é uma planta carnívora morta de fome. Meu coração é uma velha carpideira portuguesa, coberta de preto, cantando um fado lento e cheia de gemidos - ai de mim! ai, ai de mim!

Meu coração é um poço de mel, no centro de um jardim encantado, alimentando beija-flores que, depois de prová-lo, transformam-se magicamente em cavalos brancos alados que voam para longe, em direção à estrela Veja. Levam junto quem me ama, me levam junto também.Faquir involuntário, cascata de champanha, púrpura rosa do Cairo, sapato de sola furada, verso de Mário Quintana, vitrina vazia, navalha afiada, figo maduro, papel crepom, cão uivando pra lua, ruína, simulacro, varinha de incenso.

Acesa, aceso - vasto, vivo: meu coração é teu.

2 de dezembro de 2007

Observador






"Quem observa o faz de um certo ponto de vista, o que não situa o observador em erro. O erro na verdade não é ter um certo ponto de vista, mas absolutizá-lo e desconhecer que, mesmo do acerto de seu ponto de vista é possível que a razão ética nem sempre esteja com ele."


(FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. 33a. ed., p. 14, São Paulo/Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2006)