Sobre a "Serenidade" de Martin Heidegger
Por Isabel Maia
A ciência moderna postula sempre a monótona
estupidez do mundo que ela interroga
PRIGOGINE
A "Serenidade" é um belo texto de Heidegger onde ele reflecte sobre a essência da técnica moderna e onde mostra a necessidade de recuperar aquilo que ele chamou de pensamento meditativo. Não se trata de negar a técnica, obviamente, mas de repensar a nossa relação com ela. O apelo heideggeriano ao longo deste belo texto é, pois, o de mantermos acordado o pensamento já que o que o homem tem de mais próprio é, justamente, ser um ser pensante.
A técnica não é um instrumento neutral nas mãos do homem uma vez que ela pode ser objecto de diversos tipos de uso, ela poderá ser usada para o bem ou para o mal e também não deve ser encarada como um acontecimento acidental no mundo ocidental! Segundo Heidegger, a técnica consiste no resultado lógico, subsequente daquela evolução pela qual o homem, esquecendo-se do Ser, se deixou "amarrar" pelas coisas convertendo a realidade em puro objecto que há que dominar e explorar. Esta atitude acabou por se transformar numa verdadeira fé na técnica como possibilidade de domínio sobre todas as coisas. Assim, o esquecimento do ser não é um facto que atinja só o pensamento, mas determina todo o modo de ser do homem no mundo.i
Heidegger diz no seu texto "A Época das Concepções do Mundo" que a técnica mecanizada é um fenómeno essencial dos Tempos Modernos funcionando como o prolongamento mais visível da essência da tecnologia moderna. A ciência e a técnica mecanizada aparecem assim como duas importantes manifestações dos Tempos Modernos.
A ciência é, enquanto pesquisa, um fenómeno essencial dos Tempos Modernos, pois em consequência da emancipação do homem (o processo de libertação das amarras da Idade Média até atingir a sua própria liberdade), os Tempos Modernos introduziram o reino do subjectivismo e do individualismo.
A modernidade é também o domínio do princípio de razão. Este domínio coincide com a interpretação do "ente" como objecto, uma vez que o "ente" é posto perante um sujeito certo e seguro de si que assegura, por seu turno, o modelo técnico daquilo que é, e a questão abissal do ser é assim esquecida. A investigação e o método tecnologizam o pensamento, a ciência torna-se investigação pelo projecto que assegura no próprio rigor da investigação. O projecto e o rigor desenvolvem-se mediante o método.
É neste contexto que faz sentido a reflexão de Heidegger sobre a essência dos Tempos Modernos, reflexão essa centrada na necessidade de recuperar o pensamento meditativo. Para Heidegger, os ídolos da idade técnica, tais como a ciência, o progresso e a máquina devem ser destronados do mesmo modo que os da razão: a dignidade humana, os valores e as Ideias de Absoluto. É regressando ao Ser, isto é, ao que dá densidade aos seres e às coisas que podemos repensar o sentido dos antigos valores.ii
No seu texto "A Serenidade" e a propósito uma celebração em memória de um compositor, Conradin Kreutzer, Heidegger convida-nos a reflectir sobre a essência daquilo a que chamamos "pensar", começando por dizer que toda a comemoração exige que pensemos. Mas o que pensar, o que dizer numa festa consagrada à recordação de um músico?iii. Ora bem, a questão é então, até que ponto celebrar uma festa em nome da música não equivale a celebrar uma festa onde pensamos?iv Mas Heidegger diz-nos que não tenhamos ilusões, porque acontece a todos nós sermos pobres em pensamentos mesmo aos que fazem do ofício de pensar- dever profissional.
A carência de pensamentos é um hóspede inquietante que se insinua por todo o lado no mundo de hojev. Nos dias de hoje tudo se aprende da maneira mais rápida e mais económica e no momento a seguir é tudo rapidamente esquecido. Por conseguinte, dentro em breve, uma celebração é suplantada por outra celebração e, assim, as festas comemorativas tornam-se cada vez mais pobres em pensamentos.vi
No entanto, Heidegger acentua a dimensão pensante, meditativa, pois a compreensão é uma característica humana de forma que, mesmos que estejamos privados de pensar não renunciamos ao poder que temos de o fazer, tal como se nos podemos tornar surdos é precisamente porque ouvimos e se podemos envelhecer é porque já fomos jovens. Da mesma forma, se nos podemos tornar pobres em pensamentos ou, até, destituídos dos mesmos, é porque a essência do homem é, justamente, pensar, como diria Pascal "O homem é visivelmente feito para pensar. É essa toda a sua dignidade e toso o seu mérito.
Para Heidegger,a falta crescente de pensamentos repousa no processo que ataca a substância mais íntima do homem contemporâneo: o homem contemporâneo foge diante do pensamento e isso explica a falta de pensamentos e mais, o homem contemporâneo não quer sequer reconhecer esta fuga, muito pelo contrário, ele afirma o oposto remetendo para tudo o que o conhecimento científico tem produzido. Um tal pensamento tornou-se indispensável e reveste-se de um carácter particular: trata-se do pensamento calculador-parte-se de um projecto que se impõe, de um pressuposto que se põe em causa. O pensamento que conta, calcula. Submete ao cálculo as possibilidades todos os dias novas, cada vez mais ricas em perspectivas e ao mesmo tempo mais económicas.vii
O pensamento que calcula não nos deixa nenhum prazo e impele-nos de uma possibilidade a outra. O pensamento calculador não persegue, efectivamente, o sentido- ele antecipa, não se espanta, não medita.
Há, assim, dois tipos de pensamento por sua vez legítimos: o pensamento que calcula e o pensamento que medita e é este último que Heidegger tem em vista quando diz que o homem está em fuga perante o pensamento. Mas podemos perguntar: não andará o pensamento meditatitvo longe da realidade? Efectivamente, ele parece não ajudar nada nas realizações de ordem prática. Não será este pensamento demasiado "exigente", "elevado" para o entendimento comum? Na realidade, podemos até dizer que o pensamento meditativo é menos espontâneo que o pensamento calculador pois o pensamento que medita requer um esforço significativo, reclama alguns cuidados…
Por outro lado, qualquer um de nós pode, dentro dos seus limites seguir os caminhos da meditação, e porquê? Por que o homem é um ser pensante, isto é, meditativo e não é necessário que a meditação nos leve até "regiões superiores". É preciso que nos fixemos sobre aquilo que nos é próximo. Heidegger sublinha aqui a tónica no enraizamento. É da circunstância que devemos partir. É a partir do solo natal que uma obra de arte é criada e concluídaviii. Haverá uma terra natal onde o homem permaneça enraizado? Poderá o homem do futuro ser um ser meditativo? Como diz Heidegger, poderá o homem do futuro se desenvolver, poderá a sua obra amadurecer a partir de uma terra natal já constituída?, ou ficarão as coisas presas nas garras da planificação e do cálculo, da organização e do automatismo?ix
O enraizamento do homem está hoje ameaçado no seu mais íntimo e não só devido apenas às circunstâncias exteriores ou ao modo de vida superficial do homem, mas sim as espírito da época em que o osso nascimento nos fixou. O pensamento técnico fortaleceu-se, efectivamente, na Modernidade, de forma que se chega a afirmar que nasceu com ela. Mas se o pensamento técnico é algo que já existe no mundo grego, é na Modernidade que o paradigma da teoria e da praxis para a ser o paradigma técnico.
A nossa época está ameaçada pelo desenraizamento. Esta época tem o nome de idade atómica e a sua característica mais evidente é a bomba atómica. Heidegger diz-nos que o poder escondido no seio da técnica contemporânea determina a relação do homem com aquilo que ele é. Ela reina sobre a terra inteira. O homem começa já a afastar-se da terra para penetrar no espaço cósmicox. A terra é, pois, transformada num espaço cósmico. Esta revolução radical na nossa visão do mundo realiza-se na filosofia moderna. O mundo aparece como um objecto sobre o qual o pensamento que calcula dirige os seus ataques e a esses ataques nada deve resistir! A natureza torna-se num único reservatório gigante, uma fonte de energia para a técnica e indústria modernas. Seja como ‘era atómica’, seja como civilização de consumo, a época moderna é (…) caracterizada pela maneira como a humanidade quer pôr ao seu alcance a totalidade do ente e adquirir sobre esta totalidade a maior força possível graças ao domínio de todas as energias naturais, incluindo as da destruiçãoxi .E portanto, a questão não é, então, a da técnica propriamente dita mas a da relação do homem com a técnica. O perigo depende do uso que se faz da técnica. É nesta relação com o mundo que o pensamento meditativo se mostra diferente.
Se nós conseguirmos dominar a energia atómica e conseguiremos, diz-nos Heidegger, começará um novo desenvolvimento do mundo técnico. Todas as técnicas que conhecemos hoje, desde os filmes à T.V, à informação, alimentação, etc, são apenas tentativas. Ninguém pode prever os transtornos que se seguirão. Não conseguimos/podemos travar os progressos da técnica e um dos traços deste novo mundo técnico é a rapidez com a qual os êxitos são conhecidos e publicamente admirados.
Mas o que é realmente inquietante não é que o nosso mundo se torne um mundo completamente técnico, mas antes que o homem não esteja preparado para essa transformação, que não se consiga explicar pelos meios do pensamento meditatitvo.
A questão a que a filosofia deverá hoje responder é à falta de preparação do homem para esta transformação, logo, a filosofia como pensamento hermenêutico deverá ser capaz de responder a isto. A filosofia vai ser caracterizada por Heidegger como dimensão originária do existir.
De facto, o homem da era atómica será "atirado" sem aviso nem defesa na onda crescente da técnica. E sê-lo-á efectivamente s e renunciar ao pensamento meditativo assumindo o pensamento simplesmente calculador. A questão é agora: será que a era atómica é uma fatalidade ou permitirá ela um novo enraizamento?xii
Poder-se-ía pensar que Heidegger nega a técnica, mas é evidente que não se trata de negar a técnica…dependemos dos objectos tecnológicos, a questão é que não nos podemos tornar seus escravos. O homem moderno é o funcionário da técnicaxiii. É possível utilizarmos os objectos tecnológicos servindo-nos deles e, ao mesmo tempo, deles nos libertarmos, ou seja, podemos dizer "sim" à utilização da técnica, mas também "não" ao facto de a técnica monopolizar, desunir e violar o nosso ser. A questão é a de o homem não deixar que a técnica atinja o que temos de mais íntimo e de mais próximo. Heidegger sempre apelou a que se pensasse a técnica a partir da sua essência.xiv
Mas dizer "sim" e "não" não significará um relacionamento ambíguo com o mundo? Não, muito pelo contrário, torna-se um relacionamento mais pacífico. A serenidade consiste em admitir a técnica, os objectos tecnológicos ao mesmo tempo que os deixamos repousar sobre eles próprios como algo que não tem nada de absoluto. Por que é que a serenidade não é, então, ambígua? Simplesmente porque há uma dimensão conflitual no homem. Em tudo o que ele constrói reina um sentido que ele não recebe, que não constrói. O homem não é só espontaneidade, é também negatividade.
Apesar de, no limite, o homem ser votado ao nada, é também um ser que exige sentido e isto leva Heidegger da Antropologia à Ontologia. Apesar da negatividade, o homem é afirmação originária, é postulado de sentido. A Modernidade descobriu o homem como exigência de sentido ao descobrir o "cogito", mas esqueceu que é também sentido. Heidegger vai partir desta situação de negatividade que caracteriza o homem, pois ele é isso embora não coincida com isso.
Esta exigência incondicional de sentido que o homem é, leva Heidegger a pensar que a raíz do sentido é qualquer coisa que excede o próprio homem. Para Heidegger, o homem é definido como pré-compreensão do sentido. O que constitui a sua essência é a exigência de sentido, a esperança, o desejo de ser na falta do próprio Ser. Heidegger toma consciência desta experiência "de constraste", desta dialéctica do existir. Na Modernidade a orientação para o sentido aparece como coincidência. Para Heidegger, não.Apesar de o homem ser orientação para o sentido, ele ainda não é, está a ser, ele é excesso que não coincide e é muito mais do que é. É só perante esta experiência de negatividade que ele pode tomar consciência daquilo que é.
O sentido do mundo técnico oculta-sexv. Deixar-se entrever e ao mesmo tempo ocultar-se não é o traço fundamental daquilo a que chamamos segredo? Para Heidegger, na raiz da técnica está a tomada de posição face à verdade. Subjaz, de facto, à ciência moderna uma noção de ente substancializada/sujeito puro e uma ideia de verdade como adequação/certeza. Mas a verdade não é adequação, mas desvelamento. Em que é que Heidegger fundamenta a ideia de que a verdade é revelação? O facto de o dasein estar no mundo leva-o à revelação. O dasein começa por existir no mundo segundo um modelo relacional, segundo o modelo da disponibilidade. A verdade como revelação tem como fundamento a verdade como pressuposição. Não existe verdade em si, mas verdade para o homem, porque ele acredita nela. O homem é expectativa de verdade. A verdade é inerente ao homem, mas com a qual ele não coincide.É isto que levará Gadamer, por exemplo, a recuperar o modelo da obra de arte.
A verdade é, então, desvelamento. A dimensão técnica perde a dimensão da luz. Quando a luz é considerada única, todo o segredo é confundido com ambiguidade negativa. Se virmos que a técnica tem também uma dimensão que se oculta por detrás de si própria, estamos já no caminho de uma boa relação com ela. Trata-se, pois, de restaurar a dimensão de segredo/oculto da verdade. É o restaurar desta dimensão que vai ser o objecto do pensamento meditativo e só se pode restaurar essa dimensão quando o homem tomar consciência da sua historicidade.
O que levanta a questão da historicidade é uma questão muita mais radical, mais significativa que a questão ontológica.
Por que levanta Heidegger a questão ontológica, a questão do Ser? A experiência do sentido é a experiência fundamental. Qual é o pressuposto do sujeito transcendental? A sua condição "desencarnada". O sentido escapa ao homem. Aparece-lhe como aquilo que escapa à representação. O Ser é agora a questão fundamental de tudo. A questão é agora a questão do ser e esta é a questão fundamental do homem quando confrontado com a sua negatividade.
A experiência da historicidade como negatividade confronta o homem com aquilo que ele não é. Heidegger mostra em Ser e Tempo que é necessário repôr a questão do Ser e analisá-la. Ela foi mal pensada pela tradição. Pensar a historicidade é repensar a questão do Ser. A questão do ser do homem não é conforme com a ideia de uma ontologia substancialista. Para compreender a historicidade é preciso tomar a questão do existir como dasein. É do dasein que se parte para chegar à questão do seu sentido r da sua historicidade.
Por que motivo, então, se torna urgente recuperar a dimensão meditativa do pensamento?…
Heidegger sublinha que o que o grande perigo que nos ameaça é, de facto, a total falta de pensamentos, a robotização do homem. Somos seres finitos, mas ao mesmo tempo, abertos ao que nos transcende. É esta a condição finita do homem. É necessário que o homem não rejeite aquilo que possui de mais próprio- o facto de ser um ser pensante. Trata-se, então, de salvar essa essência do homem. Trata-se de manter acordado o pensamento. A Modernidade esqueceu o Ser, a realidade. Uma coisa é viver absorvido pela técnica, outra coisa é ler o mundo, habitar num mundo lendo a outra dimensão do sentido literal ou técnico que essa dimensão tem.
Assim quando despertar em nós a identidade da alma perante as coisas, e o espírito se abrir ao outro, podemos esperar alcançar um novo caminho, uma nova terra, um novo solo. Nesse solo, a criação de obras perduráveis pode enraizar-se de novo.xvi
Bibliografia
FERRY, Luc e RENAUT, Alain, Heidegger e os Modernos, Trad. de Alexandre C. Sousa, Ed. Teorema, Lisboa, 1989.
HEIDEGGER, Martin, Questions III, Trad. de A Préau, R. Munier e J. Hervier, Ed. Gallimard, Paris, 1989.
___________________El Ser y el Tiempo, 7ª ed.,Trad. de J. Gaos,F. Cultura Economica, México/Madrid/Buenos Aires, 1989.
___________________Chemins qui ne mènent nulle part, 9ª ed., Trad. De Wolfgang Brokmeier, Ed. Gallimard, Paris, 1986.
RESWEBER, Jean-Paul, O Pensamento de Martin Heidegger, Trad.de J. Agostinho Santos, Livraria Almedina, Coimbra, 1979.
VATTIMO, Gianni, Introdução ao Pensamento de Martin Heidegger, Trad. de João Gama, Col. "O saber da Filosofia", Ed. 70, Lisboa, 1987.
Notas
i Vattimo, G., Introdução a Heidegger, p.134.
ii Resweber, J.P., O Pensamento de Martin Heidegger, p. 147.
iii Heidegger, M., Questions III, p. 162.
iv Ibid., p.163.
v Ibid., p.163.
vi Ibid., p.164.
vii Ibid.,p.165.
viii Ibid., p.167
ix Idib., p.170
x Ibid., p.172
xi Luc Ferry, Heidegger e os modernos, p.72.
xii Aquilo que nos é próximo não é dado. O que nos é mais próximo é simbólico, por isso, o pensamento moderno na aproximação a isto escolheu uma via,, seguiu um só caminho. A Modernidade também viu que o dado não é simples só que fez dele algo de simples o que levou a um esquecimento do Ser, da realidade, do verdadeiro sentido das coisas e daí a necessidade de "acordar" o pensamento meditativo. Heidegger defende a necessidade do retorno às coisas e esse retorno terá de ser hermenêutico porque não é claro.
xiii Ibid., p. 72.
xiv Ibid., p.72.
xv Heidegger, M. Questions III, p.178.
xvi Ibid., p. 179.
28 de agosto de 2008
Heidegger
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