22 de novembro de 2009

ESTAMIRA






ESTAMIRA: MISSÃO CUMPRIDA



Varias opiniões....

O filme Estamira revela antes de mais nada o respeito à escuta do outro, do diferente, do estranho. Estranho que, entretanto, nos é familiar de alguma forma. Como não admirar - e concordar - com a frase dita por uma doente mental crônica segundo a qual "não existem mais ´inocentes´, mas sim ´espertos ao contrário´ " ?

Em uma cidade, um estado e um país mergulhados num sufocante lixo ético, o "lixão" de Gramacho, nem tão longe da decantada "Cidade Maravilhosa", se transforma numa metáfora deprimente do estado a que chegamos. Com humor que nos atenua as dores intoleráveis, o "Barão de Itararé" assim chamava o "Estado Novo" getulista: o estado a que chegamos. Como chamar o atual estado de coisas a que chegamos?

Não nos iludimos achando que os inúmeros traumas e vicissitudes pelas quais passou a personagem real que dá título ao documentário de Marcos Prado teriam sido "a causa" de sua doença mental. Sua mãe também necessitou de tratamentos psiquiátricos. Uma tendência desfavorável já a acompanhava geneticamente. Mas sua história de vida (que o filme vai desvendando aos poucos), sua especificidade e sua subjetividade - única e irreproduzível - estão inscritas em seus delírios, alucinações e modo de estar no mundo. Nada é gratuito, tudo é revelado, desvelado ou re-escrito na forma de Dona Estamira se apresentar. Seu discurso pode chegar a formular lições de sabedoria, mas, antes de tudo, expõe sua percepção peculiar de si mesma e do mundo em que nos encontramos: delirante e sábia, confusa e cristalina, atordoante e provocadora de reflexão.

Quando o fotógrafo Marcos Prado, ainda no ano 2.000, encontrou Dona Estamira no Lixão que ele fotografava, ela lhe teria dito que tinha uma missão: revelar "a verdade". Perguntou-lhe se sabia qual era a missão dele. Como ele não respondesse logo, ela anunciou: "Sua missão é revelar a minha missão".

Sem se furtar à profecia oracular, Marcos Prado aceitou o papel que a louca do "lixão" lhe apontou. Durante anos seguidos visitou repetidamente Estamira e seus filhos em casa assim como não deixou de ir filmar Estamira e seus companheiros, catadores como ela, no enorme e insalubre depósito de todo o lixo da cidade do Rio de Janeiro. Registrou cenas a cores com a iluminação natural; outras em preto-e-branco granulado quase chegando à desintegração da imagem; outras ainda em exemplar trabalho do fotógrafo que sempre foi. O pathos atingido pela apresentação áudio-visual é impactante, não podendo deixar de ser mencionada a presença apoiadora da exemplar trilha musical de Décio Rocha.

Incrível, no entanto, é constatar que esta é uma primeira obra para cinema. Em seu ritmo envolvente, seu diálogo com a entrevistada e a aproximação que vai fazendo gradualmente com a platéia, o filme é surpreendente em sua sintaxe, elegante em sua gramática, contundente na emoção evidente com a qual foi feito e que transmite em cada passagem.

Não cai na armadilha da idealização ingênua (nem há mais ingênuos, já anunciou o filme logo no início): Estamira pode se mostrar arrogante, verbalmente agressiva, até mesmo desagradável. Mas Marcos permite que ela se faça ouvir. E ao registrá-la faz com que escutemos sua revolta contra um "Deus estuprador" e contra médicos "copiadores" de receitas. Origens e meios são contestados e questionados. Anos depois do próprio cinema, hoje clássico, de Ingmar Bergman questionar o "silêncio de Deus" - e ainda antes do atual Papa tentar deslocar a responsabilidade dos homens para a ausência de Deus durante os horrores do Holocausto - Estamira, o filme e a personagem, denunciam o desamparo humano, não só filogenético ou ontogenético, mas também social, econômico e político. Assim como são questionadas as condições dos hospitais psiquiátricos, dos ambulatórios, dos tratamentos reduzidos à prescrição (ainda que adequada) de medicações potentes que podem até mesmo minimizar os abismos das psicoses, mas onde se corre o risco de deixar de lado a escuta do Outro, da alteridade - tudo isso e muito mais são expostos como um nervo vivo.

E o cineasta, sem proselitismo nem vassalagem, através de uma linguagem cinematográfica grave e comunicativa nos faz refletir muito mais ainda sobre uma realidade que nos parece insuportável de ser vivida, mas aonde a vida surpreendentemente se preserva da única forma que parece possível: louca. Como nos parece ensandecida uma das imagens finais do filme onde, ao longe, se vê o perfil deslumbrante dos morros do Rio de Janeiro, mas em primeiro plano nada mais do que o lixo. Muito lixo.


Por LUIZ FERNANDO GALLEGO é psicanalista e cinéfilo, curador da mostra 2008 sobre Cinema e Ética no setor Cultural da Escola de Magistratura do Fórum do Rio de Janeiro.




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A interpretação da loucura


O estado de falsidade do ser humano é algo fascinante. Vem de uma necessidade de adaptação quase biológica, de comportamentos sociais arraigados, influenciados em menor ou maior quantidade pela mídia, política, “instinto de sobrevivência” ou até mesmo impulsos sexuais. Freud explica? Talvez seja da natureza da contemporaneidade a paixão pela imagem e pelo superficial; seja da perfeição da “linda vizinha” ao “amigo leal”, conceitos criados pelo Homem que nos conduzem no dia a dia e nos dizem que o importante são as relações cultivadas, por mais falsas que sejam. Para mim, Estamira, de Marcos Prado, é sobre isso. Estamira é enxergada e tratada - não só moralmente, mas fisicamente - como louca. Marcos Prado vai nos mostrar que a loucura é assim como tudo, um ponto de vista, no caso dela, um ponto de vista comum entre várias pessoas e que eu, concordando com o dele, discordo.

Estamira é uma mulher que trabalha (e trata isso com orgulho) em um lixão. É antes de tudo alguém que já sofreu diversos abusos e possui um olhar peculiar sobre a vida. Ela se irrita quando o assunto é Deus e se diz sábia, mostrando uma postura que pode ser facilmente confundida com arrogância. Não é. Estamira é um “lugar”, uma idéia, um estado de espírito onde o ser humano pode ser mais autêntico. É alheia ao mundo (o mundo dito “são”) e assim tenta estudá-lo, e por mais que o olhar fechado de fora tente trazê-la para o “real” (é preciso dar remédio a quem “sai da linha”?), o lado inconsciente continua martelando quase como um demônio trazendo de volta discursos embolados que fazem todo sentido. É a manifestação de um interior furioso nascido de um passado infeliz e sofrido, que somado a uma boa dose de “determinismo”, transforma Estamira na figura que é.

O lixão é a representação irônica e trágica da própria condição do homem. Para um olhar raso, é meramente uma imagem de contexto social de pobreza, mas para o grão do super-8 de Marcos Prado, é o lugar onde talvez se encontre a sua própria essência. A idéia de sobrevivência de Estamira nos lembra do quanto nos apegamos ao desnecessário, e como a sensação de prazer trazida por este nos tornou quase escravos do imediato. É a paixão pela imagem já dita antes, que nos torna um bando de desconhecidos buscando impressões sedutoras e fantásticas. Será preciso perdermos tudo (materialmente falando) para poder nos encontrarmos?

Estamira tem 3 filhas e um filho, todos bem criados e que guardam imenso amor por ela, apesar de alguns deles (especialmente o filho) divergir de opinião e enxergá-la com um olhar moldado por forte religiosidade, um ponto de vista claramente antagônico ao da mãe. Para ele, assim como para muitos brasileiros, a religião e a figura de Deus são conceitos intocáveis, tornando a visão “radical” de Estamira inaceitável. Fica claro que ele a enxerga como louca, apesar de o amor de filho ainda se mostrar presente. Estamira é como um desconforto, aquela pessoa que talvez o filho não quer que as pessoas vejam, principalmente nos seus acessos de raiva. Ainda assim, é interessante ver como as filhas (duas delas criadas longe de Estamira) conseguem enxergar a beleza dentro desse dragão furioso, um sentimento que pode vir a ser uma saudade ou um olhar do jovem de cabeça aberta, interessado em escutar um pouco. Estamira quer ser ouvida, algo que ela provavelmente não foi durante a vida toda. É um acúmulo de frustrações que trazem à tona pensamentos tão honestos e nervosos que para o ouvido desatento soa apenas como delírio. É outra coisa que o filme nos lembra: precisamos escutar mais. E Estamira vai repetir as suas idéias e neologismos até conseguir ser tratada com o respeito que merece, sem a definição pré-conceituosa de louca, velha e pobre. A voz de Estamira é uma resposta à negligência social que cometemos dia-a-dia: sabemos dessa crua realidade pois vemos todos os dias no jornal, mas é muito mais confortável pensar no churrasco de domingo, na promoção, no emprego e no novo celular . É o lixo que vira descuido.

Visualmente, Estamira é uma encenação real do apocalipse. É o sol que se mistura com o fogo, com o grão, com o lixo, resto e descuido. É um filme pintado pela natureza, no caso, a humana. É uma arte do descartado, e os outros trabalhadores do lixão fazem parte desse cenário ativo e invasor, que preferimos esquecer. O plano final do filme é um daqueles momentos em que a natureza conspira a favor do cinema, não só encerrando a orquestra do Fim, como ilustrando ali mesmo tudo que foi dito e que está preso na cabeça de Estamira, esta simples humana com algo a dizer.



Postado por Gabriel Martins



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ESTAMIRA: a salvação no lixo


Mire-veja: Estamira. Esta mira. Esta mirada. Este jeito de olhar. Esse modo particular de ver. A singularidade do ser. Para além dos delírios, dos sintomas, todos facilmente enquadráveis numa classificação epidemiológica, um discurso. Absurdo, mas não sempre. E não sem sentido. Ela repete freqüentemente seu nome: Estamira. E parece estar dizendo: mire-veja, ouça-me, encare o meu ponto de vista. Respeite-me. Acredite-me. No final ela diz algo como: eu trago a boa sorte, mas a minha sorte não é boa. Ela se sabe, no fim das contas, infeliz, tratada como lixo a maior parte da vida. Condenada a viver do lixo, dele extraindo vida, força e garantindo a sobrevivência dos filhos. Ela renega Deus. Ela manda enfiar Deus no cu. Ela conhece o pode ilusório e massificante que a fé pode assumir. Blasfema? Ela sabe que em algum momento seus pensamentos perderam a linha da “normalidade”. Mas ela sabe que tem algo a dizer. Que tem um discurso, uma originalidade, uma personalidade, uma pessoa, por trás da mulher-urubu que mergulha em montanhas de lixo e dele se alimenta. Ela é Estamira. Mire veja: ela não acredita que ainda existam inocentes. Ela diz que existem espertos ao contrário. Ela enxerga inimigos, ouve vozes provocadoras, se agita e grita. Mas ela é Estamira. Ela é mais uma esquizofrênica, do tipo paranóide, seu discurso não é inclassificável nos parâmetros médico-psiquiátricos, como li um pensador dizendo num jornal. Não, ela cabe nos critérios diagnósticos , há um CID (classificação internacional de doenças) para ela, há remédios para aliviar uma parte de suas dores mentais. Mas há uma mulher, um nome, um rosto. Ela se diz grata ao lixo. Ela o freqüenta com gosto. E não é por nenhum capricho escopofílico fruto de sua doença. É porque ali ela se sente gente, ela trabalha, ela encontra nos restos algo que nutre a sua dignidade de cidadã excluída. Foi dali que ela conseguiu alimentar a família. Que reluta em tirá-la do lixo e dos sintomas porque sabe que isso seria lhe tirar uma parte da existência. Sempre comentei com amigos mais próximos que não dá pra deitar e dormir tranqüilo sabendo que há pessoas se alimentando do nosso lixo. Porque já me peguei pensando: “Não vou misturar esse queijo que estou jogando fora com o resto do lixo, senão vou inviabilizar a refeição de alguém”. Para aquém de preocupações ecológicas, embora eu seja um simpatizante da reciclagem, um pensamento que é covardemente conivente com a miséria, a fome, a sub-humanidade a que tantos brasileiros são condenados para sustentar nosso conforto. Mas Ela está lá. Vem trazer a verdade. Vem nos alertar sobre o inimigo, disfarçado, o esperto ao contrário.

Lembrei de tantas coisas: de como rimos, às vezes, interiormente, com as construções delirantes de nossos pacientes, ou comentamos depois com os colegas, ou de como apenas os ouvimos rapidamente e logo cortamos a frase para receitar a medicação que os deixará livres de suas inquietações (o que ele terão para colocar no lugar?). Estamira não quer se livrar da sua loucura. Ela quer que a sua verdade seja escutada. Lembrei da luta da minha irmã Vitória, lá em Campina Grande, junto com o Ministério da Saúde, para devolver um mínimo de dignidade a centenas de “loucos” crônicos, confinados num hospital psiquiátrico tão antigo e tradicional quanto criminoso, que deixava os doentes em celas, nas quais eles exprimiam suas aflições escrevendo com fezes nas paredes (como o Marquês de Sade, no filme que eles não viram), trancafiados por décadas, para enriquecer um dono de hospital com fortes vinculações políticas. Desse trabalho Vitória fez registros, não para obter publicidade, mas porque sua indignação não podia ficar restrita aos seus olhos... Fotos, um blog , (http://homemfe.spaces.live.com/PersonalSpace/), crônicas. A experiência irá ilustrar sua tese de doutorado em andamento. Tudo para tornar mais crível o que seus olhos sensíveis quase secaram ao constatar. Ela (e a equipe envolvida) deu a eles casa, assistência médica, sessões de cabelereiro e até os levou a um estúdio para que eles fossem fotografados, cada um com uma foto de si mesmo para enfeitar a parede da nova casa, as chamadas residências terapêuticas. Pessoas que perderam a noção de valores monetários, de como pegar um ônibus ou acender o fogo para fazer um café. Ela, contrariando meus rígidos conselhos, transportava-os em seu próprio carro, às vezes, para as consultas, o banco, o mercado. Deixava-se abraçar por aqueles sorrisos desdentados de hálito fétido e aquelas cabeleiras cobertas de piolhos. O que lhe importava era o afeto que estava dando e recebendo, e respeitar aqueles não-cidadãos, vivendo como escravos, alienados no sentido literal do termo, em pleno século 21. Um dia Vitória foi trabalhar e descobriu que, sem aviso, uma substituta sem experiência na área fora colocada em seu lugar, por obra daquelas forças ocultas que o mundo da política insiste em deixar fluir. Mas o que ela plantou, que não está nem palidamente descrito aqui, há de continuar dando frutos.

Mas voltemos à Estamira. Que usa a lente de Marcos Prado para nos revelar sua missão. Sua missão tem sido exitosa. O documentário já correu o mundo, premiadíssimo, e agora nos alerta, emociona, revolve, nauseia, cutuca nossas almas e nossa vaidade tola, nas telas dos cinemas de São Paulo.

Eu precisaria ver de novo, porque de memória não guardei as frases magníficas da sábia Estamira. Ao colocar este nome no google, milhares de páginas apareceram, e preferi não ler nada além do que está no site oficial para não “contaminar” os pensamentos deste texto, que no entanto é superficial, não mostra nem de longe o impacto, a emoção e as lições aprendidas com o documentário. Mas fica esse registro tosco, para esse nome sonoro: ESTAMIRA.

Mire: veja bem: me ouça: me escute: me enxergue: me toque: me acredite: me respeite: me dê dignidade: me dê vida! Me deixe viver! E ela arremata, como quem indaga, a nós, do mundo, “se é mais inteligente o livro ou a sabedoria”, num tratado condensado (em uma frase) sobre a criatividade, a força das idéias, da vontade humana, da potência dos sonhos, do discurso individual mas não individualista, que teima em querer ser ouvido: “tudo que é imaginário tem, existe, é”.

Postado por Renan Barbosa



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Longas e depuradas experiências


Céus imensos, um sol avermelhado tomando todo o horizonte, montanhas de lixo varridas e deslocadas pelo vento. Magníficos planos gerais transfiguram um ermo “lixão” numa paisagem quase que extra-terreste. Esse mundo estranho é, entretanto, habitado. A ele, e aos que nele vagam e trabalham, somos introduzidos através de uma mulher já idosa, nitidamente castigada pela vida, de olhar e fala intensa e delirante. Desde o início ela nos avisa que “não é comum”. Mas, por outro lado, seu ambiente doméstico, seu barraco, que alterna-se ao quase surreal ambiente de trabalho, não pode ser mais prosaico, infelizmente comum: entulho no quintal, as paredes de retalhos de placas e madeirites, os panos cobrindo os móveis – enfim, a cotidiana pobreza. Entre esses dois pólos, quem é Estamira, a personagem-título do filme de Marcos Prado? A “resposta” – ou melhor, a expressão perturbada e perturbadora do “ser Estamira”, como diria ela mesma – é o próprio filme. Não apenas o registro dos encontros e das conversas entre ela e a equipe, ao longo de vários anos – relação oriunda de um trabalho fotográfico realizado pelo diretor no “lixão” –, mas também o composição de fotografia, montagem e som deste documentário. Um documentário lírico, onde as formas visuais e sonoras expressam um movimento subjetivo, como no eu lírico de um poe- ma expressionista.

Drama cósmico

A força de Estamira, sua subjetividade transbordante e arrebatada, contamina e conduz a expressão cinematográfica. Esse lirismo se expande, com as imagens transfigurando o drama pessoal de Estamira, ampliando seu sofrimento para um drama cósmico. Acompanhamos, no cor-po-a-corpo de uma câmera cúmplice, a luta titânica de Estamira por um difícil equilíbrio psíquico, que se torna o fiel da balança da ordem universal. Com sua fala delirante potencializada pelo cinema, ela está em toda parte, aqui e agora, e “além dos além”. Ela é o próprio estofo do “real”, que “depende dela”. “Louca, mas lúcida da loucura”, diz ela, e assim, com método, “Estamira” deixou de ser um nome, aquilo que nos garante (será?) que somos sempre iguais a nós mesmos. Seu ser confundiu-se com o ser do mundo todo, todas as dores do mundo foram por ela internalizadas.

Trata-se de um filme único no documentarismo nacional. Teríamos que buscar o barroquismo de Glauber Rocha, em Terra em transe, para encontrar alguma proximidade com essa relação entre subjetividade e mundo. Nos últimos anos, começaram a surgir, dentro do boom de produção documental que se deu no País, novas formas de expressão, que experimentam caminhos novos, rompendo com a dominação do documentário pela forma da entrevista. Filmes como O prisioneiro da grade de ferro, Acidente, Violência S/A, Ônibus 174, Vilas Volantes, Aboio apontaram para novos e variados caminhos. Nesse panorama, Estamira é um marco, uma afirmação de maturidade de elaboração estética. A poderosa expressão fotográfica do filme de Marcos Prado (abaixo), um fotógrafo já consagrado na foto still, está rigorosamente subordinada à expressão lírica de Estamira. Como em grandes momentos da produção moderna, cinematográfica ou literária, a invenção estilística serve a uma construção onde se misturam a construção da subjetividade dos persona- gens e a experimentação de linguagem.

Isso foi possível graças a uma produção também rara, de responsabilidade da Zazen, produtora de José Padilha e do próprio Marcos Prado (respectivamente, diretor e produtor de Ônibus 174). Antes de chegar ao filme, Prado fotografou o “lixão” do Jardim Gramacho durante onze anos, construindo, nesse longo processo, um encontro entre sua experimentação fotográfica e o convívio com aquele espaço e seus trabalhadores.

Entre eles, Estamira, com quem estabeleceu uma relação cuja a intimidade se revela em cada plano em que ela aparece no filme, numa proximidade com o realizador para a qual a câmera foi a ponte. A partir dessa dupla experiência, humana e plástica, longa e depurada, Prado construiu uma só expressão, produzindo imagens capazes de sugerir o mundo conflitado de Estamira: ela grita contra a tempestade e o ar se revolta; ela acolhe a solidão de seus companheiros de trabalho e sua reunião em torno das chamas que brotam do “lixão” torna esse encontro visível; ela luta uma luta in- cessante e impossível contra forças que lhe parecem cósmicas, e o mar figura esse drama, sem que possamos dizer se é ela que agita o mar, ou o caminho é o inverso. Com Estamira, através de uma ascese, que soube subordinar, com sabedoria e humildade, um grande talento fotográfico à expressão do drama que se deu a conhecer de forma lenta e continuada. Todo esse cuidado, delicadeza e dedicação explode na tela de forma intensa, indissociavelmente artística e existencial.


Postado por Leandro Saraiva




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Estamira: a salvação no lixo



Estamira: a salvação no lixo
Marília Almeida


A protagonista do documentário mais visto deste ano choca, surpreende e encanta. Sua história e personalidade são únicas e, ao mesmo tempo, contém reflexos e traços de milhões. Filósofa, mulher, guerreira, louca, lúcida e feiticeira, Estamira é várias mulheres em uma. O segredo da admiração que a história de uma catadora de lixo de 65 anos com supletivo incompleto pode provocar está em um documentário bem produzido, fruto de esforço contínuo, excelente fotografia e o discurso lúcido, místico, quase psicanalítico, de sua personagem principal.

Citando suas próprias palavras, Estamira não é comum. Sua missão é falar a verdade, apesar de hoje em dia só errar quem quer. Seu prazer é ajudar e querer bem seus filhos, amigos e netos. Não suporta erros, judiação, perversidade e humilhação. Nunca teve muita sorte: a única foi ter encontrado o trabalho no lixo. Apesar destas características poderem bem delinear uma pessoa sã, ela foi diagnosticada com quadro psicótico e portadora de alucinações.

Mas Estamira não é uma personagem rasa nem pode ser simplesmente tachada pela psicanálise. Seu discurso, por vezes, ultrapassa a simples loucura e transborda filosofia e lucidez em insights geniais como “lixo é resto e descuido”, “tudo é abstrato, até Estamira”, “existe o além e o além do além que o homem não conhece”, “na escola não se aprende e, sim, se copia” e “tudo que é imaginado existe, é e tem”. Ela também cria e cita abundantemente entidades misteriosas como o “esperto ao contrário”, o “trocadilo” ou “a que revela o homem como único condicional”. Elas são complementadas por um discurso anti-Deus e lembra os malogrados e vingativos-astutos que Nietzsche afirmava regerem a humanidade.

O segredo deste comportamento brilhante pontuado por acessos de raiva, revolta e extrema fluência parece residir em traumas da sua vida, que vão sendo pouco a pouco delineados pelo filme. O diretor optou por não colocar depoimento de cientistas e psiquiatras. O discurso de Estamira, pontuado por seus três filhos e amigos do lixão, segue uma ordem cronológica, com seqüências interligadas que apresenta progressivamente a realidade nua e crua de sua protagonista, sem meias palavras.

Em um debate com o diretor Marcos Prado, promovido pela Casa do Saber Jardins, descobri que a idéia do documentário foi permeada de acasos. Seu objetivo inicial era mostrar a transformação do lixão de Jardim Gramacho, localizado no município de Duque de Caxias - RJ, em um aterro sanitário. Com uma área de mais de 1.200m2, ele concentra 85% do lixo produzido na cidade do Rio de Janeiro.

Este processo duraria dez anos e começou em 1993. Foi apenas no sétimo ano que Marcos encontrou Estamira, ao perceber que não havia se aproximado daqueles trabalhadores que somavam dois mil. Inicialmente, pediu àquela senhora de estatura baixa, pele morena e rosto marcado pela idade e trabalho, se poderia fazer seu retrato. Em meio a tantas recusas de outros trabalhadores, Marcos encontrou receptividade e uma vontade de se expressar incomum. Daí para a idéia do filme foi um passo. Foram quatro anos de filmagens e a história do aterro, que acabou servindo apenas como seu pano de fundo, virou livro.

Marcos possui uma produtora e já tinha feito um documentário sobre o trabalho dos carvoeiros e co-produzido o já clássico Ônibus 174 com José Padilha. Acompanhado por uma equipe pequena composta apenas por um câmera, assistente de produção e som, em turnos de 12 horas enfrentou o mau-cheiro do lixão e aprendeu a lidar com traficantes e a prostituição da favela que rodeia o local. Com um gosto especial para temas áridos, seu próximo trabalho irá retratar o cotidiano da tropa de elite carioca.

Não é difícil saber que o diretor, além de documentarista, é também fotógrafo profissional. A fotografia do filme é seu ponto forte, juntamente com o toque especial de sua trilha sonora, que lhe proporciona momentos de poesia em meio à paisagem aterradora do lixão como a briga de dois cachorros por uma boneca ou a dança cronometrada dos urubus, devidamente valorizadas pela opção do filme manual preto-e-branco em contraposição ao colorido digital do resto do documentário.

O que poderia ser simplificadamente tachado como estética da pobreza é apenas instrumento para um fundo místico que combina com o discurso da protagonista. Uma cena belíssima mostra Estamira entrando no mar no começo de uma tempestade. Pequena em frente a grandes ondas formadas, ela chama por suas filhas marítimas e parece guiar misteriosamente os poderes da natureza.

O lixão onde Estamira trabalha, já transformado em aterro, está para ser transferido, pois já atingiu sua capacidade máxima. De acordo com Marcos, há a possibilidade dos novos não permitirem catadores, o que acarretará na perda de 15 mil empregos indiretos e 2 mil diretos. Autônomos, os catadores de lixo chegam a faturar R$1.100 por mês. São condições desumanas e insalubres de trabalho, onde se inala constantemente gás metano, que faz com que não haja vida rastejante no ambiente. No lixão, uma doença também pode se alastrar rapidamente e provocar a morte de até cem pessoas. Apesar disso, quase ninguém quer sair de lá, pois têm uma vida mais digna do que fora dele.

O documentário já ganhou 25 prêmios nacionais e internacionais, entre eles Melhor Documentário pelo Júri Oficial do Festival do Rio de 2004 e da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo do mesmo ano, além de festivais de Londres, Miami e Viena, entre outros. O diretor é sincero ao demonstrar como este gênero ainda não é deglutido pelo público do cinema, apesar da marca de 22 mil pessoas nos cinemas de São Paulo, Rio de Janeiro e Brasília, além de grandes patrocínios como Vivo e o apoio de leis de incentivo, já poderem ser considerados uma vitória.

Após recusar a internação, Estamira vive hoje à base de medicamentos tarja preta e um tratamento acompanhado mês a mês. Seu discurso pode ter se apagado pelas altas dosagens químicas, mas faço minhas suas palavras e concluo: ninguém irá mudar seu ser. Estamira é a beira do mundo, a visão de cada um e ninguém pode viver sem ela.

Marília Almeida
São Paulo, 19/9/2006




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ESTAMIRA



Eu, como pessoa comum, gostaria de colocar uma reflexão sobre o que me tocou sobre o filme Estamira

Milhares de pessoas podem ter cruzado o caminho de Estamira, e julgaram-na louca, miserável, ou qualquer outro adjetivo imediato superficial, mas somente alguém que possuísse a semente do “cometa” poderia reconhecê-lo, disfarçado no meio do lixo do descaso da podridão da humanidade...
Muito mais fácil seria julgar, difícil sim é ter a ousadia de jogar para uma sociedade “cega” de tantos medicamentos as Verdades que somente alguém livre poderia ouvir e entender.
Livre, aliás é o que o filme deixa muito forte....Vc pode ser livre no meio de todas as prisões impostas pelos homens e sua ignorância, mas ser livre das prisões não “sangúineas” somente alguém com muito Amor, ciência e consciência poderia ousar....
Deixo aqui minhas lágrimas de emoção e admiração, por saber que existem Estamiras tentando nos acordar, e que existem profissionais cientes e conscientes capazes de ousar para que no nosso conforto pudéssemos acessar essa realidade...

É disso que precisamos para tentar consertar as grandes falhas que nos trouxeram a este caos atual, e conscientizar mais pessoas para elevar a visão de DEUS como nós mesmos e reimplantar o seu reino de paz, Amor, Justiça e Harmonia aqui na Terra...

Minha admiração e vibração para toda a equipe deste maravilhoso projeto

Paz e Luz

Valéria


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Fonte: http://www.cinemaemcena.com.br/estamira/blog.asp

Mulheres na Rede






Hai-kai da separação



Levas de mim, em teu centro,
tudo de bom que eu tenho!
Levo de ti, em meu canto,
tudo de bom que tens!
A vida leva de nós


em seu último momento,
o Eterno Encontro!




João de Abreu Borges















Vem me buscar...



Caminhamos em tempos diferentes
Sem um rumo sequer
Você procura seu lado gente
Eu desabrocho como mulher...

Eu que o ciúme desconhecia
Passo horas a imaginar
A outra: Que heresia!
Seu sagrado corpo tocar...

Rolo sempre na cama
Mas não é por prazer
Só loucura de quem ama
Aquele que não pode ter...

Penso que mais fácil seria
Procurar outro qualquer
Mas seria hipocrisia
Já que só você meu corpo quer...

Continua doendo tanto
Que mil vezes me vejo a implorar
Volta, ainda que por encanto
Venha, por favor, me amar...

Você procura por sua essência
E eu imploro seu amor fatal
Por você perco a inocência
Transformo-me em simples mortal...

Me perco nessa sina minha
Sendo o que você quiser
Destruo minha coroa de rainha
Para ser apenas sua mulher...

Se tudo isso não comove
Ainda volto a clamar
Venha com o vento que te move
Volta e vem me buscar...


Autoria de Lou de Olivier











A garotinha


O homem por detrás do balcão olhava a rua de forma distraída.
Uma garotinha se aproximou da loja e amassou o narizinho contra o vidro da vitrine. Os olhos da cor do céu, brilhavam quando viu um determinado objeto.
Entrou na loja e pediu para ver o colar de turquesa azul.
- É para minha irmã. Pode fazer um pacote bem bonito?, diz ela.
O dono da loja olhou desconfiado para a garotinha e lhe perguntou:
- Quanto de dinheiro você tem?
Sem hesitar, ela tirou do bolso da saia um lenço todo amarradinho e foi desfazendo
os nós. Colocou-o sobre o balcão e feliz, disse:
- Isso dá?
Eram apenas algumas moedas que ela exibia orgulhosa.
- Sabe, quero dar este presente para minha irmã mais velha. Desde que morreu nossa
mãe ela cuida da gente e não tem tempo para ela. É aniversário dela e tenho certeza
que ficará feliz com o colar que é da cor de seus olhos.
O homem foi para o interior da loja, colocou o colar em um estojo, embrulhou com um vistoso papel vermelho e fez um laço caprichado com uma fita verde.
- Tome!, disse para a garota. Leve com cuidado.
Ela saiu feliz saltitando pela rua abaixo.
Ainda não acabara o dia quando uma linda jovem de cabelos loiros e
maravilhosos olhos azuis adentrou a loja. Colocou sobre o balcão o já conhecido embrulho desfeito e indagou:
- Este colar foi comprado aqui?
- Sim senhora.
- E quanto custou?
- Ah!, falou o dono da loja. O preço de qualquer produto da minha loja é
sempre um assunto confidencial entre o vendedor e o cliente.
A moça continuou:
"Mas minha irmã tinha somente algumas moedas! O colar é verdadeiro, não é?
Ela não teria dinheiro para pagá-lo!"
O homem tomou o estojo, refez o embrulho com extremo carinho, colocou a fita e o devolveu à jovem.
- Ela pagou o preço mais alto que qualquer pessoa pode pagar.

ELA DEU TUDO O QUE TINHA.

O silêncio encheu a pequena loja e duas lágrimas rolaram pela face
emocionada da jovem enquanto suas mãos tomavam o pequeno embrulho.

"Verdadeira doação é dar-se por inteiro, sem restrições.
Gratidão de quem ama não coloca limites para os gestos de ternura.
Seja sempre grato, mas não espere pelo reconhecimento de ninguém.
Gratidão com amor não
apenas aquece quem recebe, como reconforta quem oferece."

Fonte:http://www.mulhervirtual.com.br










Poema de mulher




Que mulher nunca teve
Um sutiã meio furado,
Um tio meio tarado
Ou um amigo meio viado?


Que mulher nunca temeu
Uma consulta dentária,
Passar atestado de otária
Ou a incontinência urinária?


Que mulher nunca tomou
Um fora de querer sumir,
Um porre de cair
Ou um lexotan pra dormir ?


Que mulher nunca sonhou
Com o marido da melhor amiga,
Com a sogra morta, estendida
Ou com uma lipo na barriga ?


Que mulher nunca pensou
Em zunir uma panela,
Jogar os filhos pela janela
Ou que a culpa era toda dela ?


Que mulher nunca penou
Pra ter a perna depilada,
Pra aturar uma empregada
Ou pra trabalhar menstruada ?


Que mulher nunca acordou
Com um desconhecido ao lado,
Com o cabelo desgrenhado
Ou com o travesseiro babado ?


Que mulher nunca comeu
Uma caixa de Bis, por ansiedade,
Uma alface, no almoço, por vaidade
Ou um canalha por saudade ?


Que mulher nunca apertou
O pé no sapato pra caber,
A barriga pra emagrecer
Ou um fininho pra enlouquecer ?


Que mulher nunca jurou
Que não estava ao telefone,
Que nem pensa em silicone
Ou que "dele" não

lembra nem o nome?


(A.D.)








Senhora, partem tão tristes
meus olhos por vós, meu bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.


tão tristes, tão saudosos,
tão doentes da partida,
tão cansados, tão chorosos,
da morte mais desejosos
cem mil vezes que da vida.


partem tão tristes os tristes,
tão fora de esperar bem,
que nunca tão tristes vistes
outros nenhuns por ninguém.


João Roiz de Castelo-Branco







O AMOR





Almitra pediu: fala-nos do amor.


O profeta ergueu a cabeça e olhou a multidão em silêncio. depois numa voz forte e firme exclamou:


- Quando o amor vos fizer sinal, segui-o, ainda que os seus caminhos sejam duros e difíceis.


E quando as suas asas vos envolverem, entregai-vos, ainda que a espada escondida na sua plumagem vos possa ferir. e quando vos falar, acreditai nele, apesar de a sua voz poder quebrar os vossos sonhos como o vento norte ao sacudir os jardins.





khalil Gibran









ROMANCE PELO CHAT




- Doutor, sofro de insônia. Levantei ontem à noite e flagrei meu marido fazendo sexo pela Internet. Isso é traição?
- Em primeiro lugar, de onde a senhora está teclando?
- Taguatinga. E o senhor?
- Miami. Veja, sua pergunta já traz uma resposta embutida: SIM. O relacionamento
conjugal implica em trocas e responsabilidades, e esse seu incômodo significa que a senhora não está recebendo a atenção da qual se julga merecedora.
- Aquele safado!
- Essa aparente discordância sobre o tema deveria ser objeto de um diálogo com seu marido.
- Maníaco, é o que ele é!
- Talvez a senhora devesse procurar um psicoterapeuta ortodoxo, e não um profissional on-line como eu.
- Sabe o nome da sirigaita, doutor? Lara Croft.
- Hummm... Interessante. Isso abre um novo campo. Se o seu marido se relaciona com um personagem de videogame, talvez tenhamos de voltar a questões mal resolvidas que ficaram lá da infância.
- A magrela peituda da Lara Croft! E olha que eu tenho muito mais carne do que aquela tábua de passar roupa empenada.
- Hummm... Interessante essa questão da auto-imagem. A senhora poderia descrever-se?
- 35 anos, mas aparento menos. Peso proporcional. Loira.
- Legítima?
- Eu pinto o cabelo há tanto tempo que já virei legítima.
- Hummm... Interessante essa transferência da persona morena para a persona loira. A senhora referiu-se a Lara Croft como - deixe-me voltar o cursor - magrela peituda.
Talvez a não aceitação do corpo esteja provocando crises de auto-estima. Gostaria de ter seios maiores?
- Não. São de bom tamanho. Todo mundo elogia.
- Hummm... Interessante. Qual o seu número?
- Nunca lembro. Vou olhar na etiqueta. 46.
- Hummm... Interessante. A senhora tem uma webcam aí?
- Uma o quê?
- Câmera conectada à Internet.
- Não, doutor. Para quê?
- Para eu ver seus olhos, o espelho da alma. Curiosidade, só.
- Hummm... Também sou curiosa. Como o senhor é?
- Um tipo comum, 53 anos, cabelos grisalhos.
- Adoro homens grisalhos. Será alguma coisa mal resolvida na relação entre meu pai e eu?
- Talvez a senhora deva procurar um terapeuta sexual on-line.
- O senhor não é terapeuta sexual e nós não estamos on-line?
- Sim, mas não acho ético um terapeuta analisar a paciente pela qual se sente atraído... Ops!
- O senhor, atraído também? Então, o que nós estamos fazendo não é sexo pela
Internet? Ou pelo menos umas preliminares? E isso não é traição?
- NÃO. Relaxe. E fale-me dessas suas noites de insônia.
- Falo. Mas, só uma coisinha, doutor: a webcam é mais barata aí em Miami, ou aqui na Feira do Paraguai?











O que dizer a respeito da traição virtual?



A fidelidade exigida no casamento depende do tipo de acordo entre as partes, mas envolve também alguns fatores objetivos. Entre um cônjuge e um personagem de livro, filme ou videogame não haveria infidelidade, embora a obsessão de um por isso ou por qualquer outra coisa, com conotação mais, menos ou nada sexual, pudesse influir em sua capacidade de pagar devidamente suas obrigações conjugais relativas a conjunções carnais e outras atenções concomitantes ou não.


Quanto a outro cônjuge atrair-se ou apaixonar-se por um terceiro, isso também ainda não constitui infidelidade, mesmo que seja correspondida na paixão ou atração. A infidelidade vai depender da consumação da infidelidade, mediante conjunções carnais - adultério - ou outras ações que, embora tecnicamente não configurem adultério, configuram grave humilhação para o cônjuge traído, e são motivos suficientes para a separação onerosa (com direito de indenização à parte vítima do adultério ou humilhação). Nota que no caso desse pequeno conto, não há propriamente um jogo "amoroso" deliberado, apenas a constatação de uma atração recíproca, o que não constitui traição às regras conjugais... embora possa causar alguma aflição ao outro cônjuge, caso fique sabendo.


(...) Procurei e achei a lei que fala da tal "conduta desonrosa". É a famosa lei do divórcio (LEI Nº 6.515, DE 26 DE DEZEMBRO DE 1977, que peguei na Internet http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6515.htm):


"Art. 5º - A separação judicial pode ser pedida por um só dos cônjuges quando imputar ao outro conduta desonrosa ou qualquer ato que importe em grave violação dos deveres do casamento e torne insuportável a vida em comum. "


Nota que nesse caso são pertinentes aspectos peculiaríssimos de cada um e cada casamento, embora também envolva a questão da razoabilidade. Mais uma vez, o incerto será a caracterização de culpa - e respectivos ônus, como dever de indenização ou perda de certos direitos - na separação... mas, realmente, "motivo" para a separação ou divórcio é quase que garantida no caso de uma das partes meramente se sentir inconformado com uma conduta ou mera preferência do cônjuge. Vale até ciúmes por conta da admiração platônica pelo Jô Soares ou da Marta Suplici, da parte do outro cônjuge. Pretexto ou maluquice serve para separar... afinal, também serve para juntar...




Régis Antônio Coimbra