A erótica do ouvir
(Rubem Alves)
O mundo da psicanálise é estranho, tão estranho quanto o mundo da Alice no País das Maravilhas. Ali as coisas que a gente conhecia bem, que eram familiares, de repente se transformam em outras e a gente não conhece mais. E o mais curioso é que a psicanálise diz que é com essas coisas estranhas e bizarras que nós somos feitos. Uma dessas idéias estranhas é que o corpo, na sua pureza primitiva, era inteirinho sexual. Tudo, no corpo, era zona erógena. Todos os sentidos eram órgãos de se fazer amor com o mundo, cada um produzindo um prazer diferente. Aí o corpo perdeu o paraíso e a sua sexualidade exuberante e multiforme se encolheu e se localizou nos órgãos genitais.
De que me adianta conhecer o livro de receitas de cor se não como as comidas que estão lá, tão bonitas, tão apetitosas? Sim, você precisa saber as receitas de cor para passar no vestibular. Os vestibulares são constituídos de perguntas sobre receitas. Se você não as souber você não passa. Mas e o prazer de comer? De que me adianta conhecer o mundo inteiro se ele não me excita ( na escola não se ensina que o mundo é excitante, cheio de delícias...), se não o degusto? De que me adiante sentar-me à mesa do banquete se só sei comer hamburguers?
Rolland Barthes, já velho, aprendeu a diferença entre saberes e sabores, entre ciência e sapiência. Sapiência é saber saboroso. E o professor – ele é o mestre de Kama-Sutra cuja missão é iniciar os seus alunos nas várias posições do amor. (Quando você se dirigir à sala de aula, amanhã, vá repetindo: “Sou mestre de Kama-Sutra. Ensino aos meus alunos as várias posições de se fazer amor com o mundo...” Ah! Você vai sentir uma excitação que você nunca sentiu. Aquilo que Fernando Pessoa descreveu como uma “erecção no pensamento”... ).
Quem diria que os ouvidos são órgãos sexuais? Pois o são, tanto fisicamente ( as mordidinhas no lóbulo da orelha...) quanto como canais pelos quais as palavras entram. Os ouvidos são vaginais, femininos, a boca é fálica, masculina. Todos, homens e mulheres, temos os dois. Os homens também são femininos e têm orgasmos auditivos, enquanto que as mulheres têm orgasmos masculinos, de fala. Quando boca e ouvido se unem, amorosamente, é a alegria! Mas, tal como acontece com os prazeres do sexo, os dois, boca e ouvido, precisam estar excitados. O professor é o mestre...
Mas desaprendemos a erótica do ouvir. Sabemos usar os ouvidos como ferramentas. Mas não sabemos usá-los como brinquedos. Geórgia O’Keeffe (1887-1986), uma surpreendente pintora norte-americana observou que não sabemos ver, porque ver exige paciência e atenção. O mesmo se pode dizer do “ouvir”. Ouvir é uma virtude feminina, receptiva, deixar-se ser penetrado. Acolher as palavras no colo. Para se ouvir bem é preciso ser Taoista. Falar palavras com um oco dentro. Palavras que carregam o silêncio.
Vejo sempre nos jornais anúncios de “Cursos de Oratória”. Eles são especialmente procurados por políticos e executivos. Nunca vi anunciado um “Curso de Escutatória”. Todo mundo que falar. Ninguém quer ouvir.
A tradição da docência é: os professores falam; os alunos ficam em silêncio. Da minha sala de aulas no primeiro ano eu ouvia a voz esganiçada da professora na sala ao lado gritando: “Silêncio”! Muitos anos se passaram. A Andréa, menininha de 6 anos de idade, foi colocada na creche para que sua mãe pudesse trabalhar. Voltando para casa, ao final do primeiro dia, foi lhe perguntado: “E que tal é a professora?” Resposta curta, decisiva, precisa: “Ela grita.” A voz da professora havia introduzido uma perturbação no seu mundo. No centro da sua escola estava o grito da professora para que só a voz dela voz fosse ouvida. Aqui está a primeira lição de política.
Desdmond Morris, no seu livro O macaco nu, fala sobre a criancinha na barriga da mãe, longe de tudo, mergulhada no seu sono líquido. O que ela ouve, por nove meses, sem interrupção, é o pulsar binário do coração da mãe: tum-tum, tum-tum, tum-tum. Som. Ritmo. Esse ritmo está dizendo: “Tudoestá bem, tudoestábem, tudoestábem...” A música sem palavras do coração da mãe, sem uma única palavra, ensina tranquilidade. Por isso as canções de ninar são no ritmo binário, pelo seu efeito hipnótico, calmante. Um corpo que aprendeu a lição fundamental do bater binário do coração da mãe está pronto a ouvir todas as músicas do mundo, musicas que só são ouvidas quando “os ouvidos dos meus ouvidos acordam...”
Um único som pode valer o universo. Está lá, num poema de Fernando Pessoa - não o encontrei, vou dizê-lo da forma como me lembro: “Valeu a pena o universo ter sido criado só pelo som desse vento batendo no meu rosto".
13 de julho de 2007
A erótica do ouvir
às 18:53:00
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