A LEI MORAL KANTIANA E A PERVERSÃO EM SADE
Adriane Wollmann
adrianew@onda.com.br
OBJETIVO
Não é novo afirmar que a construção psicanalítica recorreu e articulou conceitos advindos da filosofia. Por estarem inseridos em campos de saberes diferentes as tentativas de aproximação entre os conceitos podem suscitar muitas vezes uma interpretação superficial ou equivocada das obras filosóficas.
Ao escrever “Kant com Sade”, Lacan retoma o texto freudiano que utiliza o imperativo categórico kantiano para descrever a instância superegóica e a introduz no estudo da perversão, onde o imperativo é o gozo. O objetivo de Lacan era explicar os fenômenos clínicos e a ética da psicanálise, apropriando-se para tanto do discurso filosófico.
Dessa elaboração nasce a questão: Como a psicanálise de Lacan aproximou as obras de Kant e de Sade, alinhando o imperativo categórico kantiano com a transgressão sadiana para articular o gozo do superego ao fantasma perverso?
O que se objetiva é indagar as condições de possibilidade de aproximação da lei moral kantiana ao fantasma perverso, analisando as máximas kantiana e sadiana a partir de seus autores, para explicitar as diferenças irredutíveis entre ambas e seus pontos convergentes, interrogando dessa forma a interpretação de Lacan.
RESUMO
A obra de Donatien Alphonse-François, o Marquês de Sade, esteve durante muito tempo em suspenso, num misto de clandestinidade e recusa social, sendo trazida à luz e consagrada apenas no século XX. A dificuldade de encontrar nas prateleiras das livrarias a literatura sadiana fez com que alguns editores audaciosos publicassem sua obra completa.
Em 1960, a Editora Circle du Livre Precièux publicou os quinze volumes da obra de Sade, apresentada por grandes intelectuais franceses da época.
Lacan pediu para fazer o prefácio do terceiro volume da coleção, que continha “A Filosofia na Alcova”. Para tanto, em 1962 escreveu “Kant avec Sade”[1]. Ao que se sabe, o texto de Lacan foi recusado.
Jacques-Alain Miller, psicanalista francês, reconta que o editor afirmou “não ter entendido nada do texto, e assim, não poderia publicá-lo”[2]. Foi também recusado na Nouvelle Revue Française[3]. Lacan conseguiu publicá-lo na Revista Critique (dirigida na época pelo seu cunhado), e hoje pode ser lido em seus Escritos[4].
Em “Kant avec Sade” Lacan afirma que “A Filosofia na Alcova” surge oito anos após a “Crítica da Razão Prática” e que além de serem compatíveis e complementares, “A Filosofia na Alcova fornece a verdade da Crítica”.[5] O que se pretende com essa elaboração é entender a que verdade Lacan está se referindo.
A LEI MORAL KANTIANA
O material teórico kantiano aponta para o ano de 1785, em “Fundamentação da Metafísica dos Costumes” a definição de imperativo: “A representação de um principio objetivo, enquanto seja constitutivo para uma vontade, chama-se mandamento (da razão) e a fórmula do mandamento chama-se imperativo”[6].
Na elaboração do filósofo todos os imperativos se expressam pelo verbo dever (do alemão sollen) e “mostram assim a relação de uma lei objetiva da razão com uma vontade que, por sua constituição subjetiva, não é necessariamente determinada por tal lei (uma obrigação)”[7].
Para Kant todos os imperativos ordenam de forma hipotética ou categórica, sendo distinguidos pela finalidade da ação. Os hipotéticos representariam a necessidade prática de uma ação para se atingir um fim outro. Já o imperativo categórico representaria uma ação objetivamente necessária, sem relação com nenhum outro fim. Os imperativos também diferem quanto à lei e Kant distingue: “notemos que só o imperativo categórico tem o caráter de uma lei prática, ao passo que os outros imperativos podem chamar-se princípios da vontade, mas não leis”[8].
De uma outra forma, poder-se-ia entender o imperativo categórico como uma obrigação incondicional ou uma obrigação independente da vontade ou de desejos.
Quando Kant revela que o imperativo categórico é incondicional afirma que só “a lei traz consigo o conceito de uma necessidade incondicionada, objetiva e, em conseqüência, universalmente válida”[9]. O imperativo categórico não remete a um dever externo, mas a um dever interior, sendo dessa forma um juízo a priori, ou seja, que não necessita da experiência.
Kant na “Crítica da Razão Prática” classifica os princípios práticos ou as proposições que encerram uma determinação geral da vontade em subjetivos e objetivos. “São subjetivos, ou máximas, quando a condição é considerada pelo sujeito como verdadeira unicamente para a sua vontade, são por outro lado, objetivos ou leis práticas quando a condição é conhecida como objetiva, isto é, válida para a vontade de todo ser racional.”[10]
Uma vez que no postulado kantiano o imperativo categórico é determinado da seguinte maneira: “Age de tal modo que a máxima de tua vontade possa valer sempre ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal”[11], pode-se entender que o princípio subjetivo pelo qual se determina uma ação deve ser idêntico ao princípio objetivo que determina a ação de qualquer ser racional finito.
A FILOSOFIA NA ALCOVA
“A Filosofia na Alcova”, publicado em 1795, é considerado um romance falsamente póstumo[12], uma vez que o próprio Sade teve a precaução de passar-se por morto para editá-la, dezenove anos antes de sua morte. Sade, logo no prefácio desta obra escrita em 1794, também intitulada de “Os Preceptores Imorais”, oferece-a aos libertinos:
"Voluptuosos de todas as idades e sexos, a vós somente que ofereço esta obra; nutri-vos de seus princípios, eles favorecem vossas paixões; e essas paixões, com que estúpidos e frios moralistas tentavam vos horrorizar, são apenas os meios que a natureza emprega para fazer o homem atingir as metas que traçou para ele. Não ouvi senão essas paixões deliciosas: sua voz é a única que pode vos conduzir à felicidade”.
A obra se refere à educação de uma jovem cujo decorrer do aprendizado vai além do erotismo. Nesse romance, os personagens amorais e imorais Dolmancé e Madame de Saint-Ange iniciam Eugénie, jovem aparentemente ingênua, nas artes eróticas mais proibidas pelo pudor da sociedade. As "lições" que Eugénie recebe incluem todos os tipos de práticas sexuais, com demonstrações práticas sempre permeadas por diálogos que transgridem a moralidade:
“Falam-nos de uma voz quimérica dessa natureza que nos diz de não fazer aos outros o que não queremos que nos seja deito. Mas esse conselho absurdo nunca nos veio senão de homens, e de homens fracos. Um poderoso jamais faria tal discurso. Foram os primeiros cristãos, dia a dia perseguidos por seu sistema imbecil, que gritaram a quem queria ouvi-los: Não queimeis, não nos esfoleis! A natureza diz que não se deve fazer aos outros o que não queremos que nos seja feito.Imbecis! Como a natureza, que sempre nos aconselha o deleite e jamais nos imprime outros movimentos e inspirações, poderia, em seguida, numa inconseqüência sem limites, assegurar-nos de que não devemos nos deleitar se isso traz sofrimento aos outros? Ah, acreditemos, acreditemos Eugénie! A natureza, mãe de todos, só nos fala de nós mesmos; nada é tão egoísta quanto sua voz; e o que reconhecemos nela de mais claro e imutável é seu santo conselho de deleitar-nos não importando à custa de quem quer que seja”.[13]
Nesta obra expande-se o pensamento sadiano, com diálogos entre os personagens onde são contemplados assuntos como o mal, a moral, o bem, a sociedade, a religião, os bons costumes, a política. Um dos personagens sadianos inclusive lê, num intervalo da orgia, trechos do panfleto “Franceses, Mais um Esforço se Quereis Ser Republicanos”[14], do próprio Sade.
FRAGMENTOS DO PENSAMENTO DE LACAN
Lacan afirma, em seu Seminário 20 (Mais, Ainda) que há, na perversão, uma subversão da conduta apoiada no “savoir-faire”, ou seja, apoiado a um saber, ao saber sobre a natureza das coisas. “Há uma embreagem direta da conduta sexual sobre o que é sua verdade, isto é, sua amoralidade”.[15]
Já no Seminário VII, A Ética da Psicanálise, encontra-se a interpretação lacaniana que Kant convida-nos, quando consideramos a máxima que regula nossa ação, a considerá-la por um instante como a lei de uma natureza na qual seríamos convocados a viver. Observa que Kant faz referência a uma natureza e não a uma sociedade.
Lacan acreditava que Sade, ao escrever A Filosofia na Alcova, justifica ponto por ponto o derrubamento dos imperativos fundamentais da lei moral quando preconiza o incesto, o adultério e os crimes.
“Se é eliminado da moral todo elemento de sentimento, se no-lo retiram, se se invalida todo guia que exista em nosso sentimento, de modo extremo o mundo sadista é concebível – mesmo que ele seja seu avesso e sua caricatura – como uma das efetivações possíveis do mundo governado por uma ética radical, pela ética kantiana tal como ela se inscreve em 1788.”[16]
REFERÊNCIAS
Kant, Immanuel. Critica da Razão Prática. São Paulo: Editora Martin Claret, 2005.
______. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. São Paulo: Editora Martin Claret. 2005
Lacan, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: JZE. 1998.
______. Seminário XX, Mais, Ainda. Rio de Janeiro: JZE:1985.
______. Seminário VII, A Ética da Psicanálise.Rio de Janeiro: JZE. 1991.
Miller, Jacques-Alain. Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: JZE. 1997.
Sade, Marquês de. A Filosofia na Alcova. Rio de Janeiro: Editora Iluminnuras. 2003.
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[1] Miller, Jacques-Alain. Lacan Elucidado: palestras no Brasil. Rio de Janeiro: JZE. 1997. Pg 156-157
[2] Miller, Jacques-Alain. Idem.
[3] Maior revista de literatura na França, dirigida na época por Jean Poulanc, amigo de Lacan.
[4] Lacan, Jacques. Escritos. Rio de Janeiro: JZE. 1998.
[5] Lacan, Jacques. Idem. Pg 776-777.
[6] Kant, Imanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Pg 44
[7] Kant, Imanuel. Idem. Pg 44
[8] Kant, Immanuel. Idem pg 45
[9] Kant. Immanuel. Idem. Pg 47
[10] Kant. Immanuel. Critica da razão Prática. Pág 27
[11] Kant. Immanuel. Fundamentação da Metafísica dos Costumes. Pg 51
[12] Mota, Leda Tenório. Apresentação de A Filosofia da Alcova. Edição Iluminuras, 2003.
[13] Sade(1795). A Filosofia na Alcova. Rio de Janeiro: Editora Iluminnuras. 2003. Pg 80.
[14] Sade. Idem. Pg 125
[15] Lacan, Jacques. Seminário XX, Mais, Ainda. Rio de Janeiro: JZE:1985. pg 117
[16] Lacan, Jacques. Seminário VII, A Ética da Psicanálise.Rio de Janeiro: JZE. 1991 pg101.
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