11 de julho de 2008

O sonho e o desejo de um beijo





O sonho e o desejo de um beijo

Tive um sonho insólito esta noite depois de ter pego no sono por
volta das três da madrugada. Estava angustiado no útero de minha mãe
aguardando com pouca paciência a hora de meu nascimento. Havia uma
incontrolável vontade de conhecer o mundo. Seria minha primeira
grande aventura e certamente a viagem mais fascinante que faria.
Expectativa. Eu vivia num ambiente ao mesmo tempo hostil e sagrado
pois a escuridão me parecia confortável, e a umidade, terna e morna,
de alguma maneira me consolava. Entretanto o barulho me irritava e
era ininterrupto. Eu sentia mãos gigantescas perscrutando aquele
esconderijo acolhedor e me dando violentos trancos aterradores.
Aquilo me assustou e me fez desistir de nascer. Queria
desesperadamente voltar à trás. De repente tudo me pareceu muito
assombroso e inóspito fora da segurança de minha caverna. E eu já
sabia o que me esperava, das mazelas às riquezas do mundo, das
pessoas e de seus fantasmas e então tentava a todo custo me encolher
e lutar para me manter ali naquelas lubrificadas engrenagens mas a
emborrachada mão insistia e segurava minha cabeça e eu não tinha
força para lutar. Foi então que ela me agarrou e me arrastou para
fora como se extirpasse um apêndice e eu me senti afogado, sufocado
e amedrontado olhando para todas aquelas caras estranhas e aquela
luz absurdamente clara não me deixa abrir os olhos. A violência não
cessa, são seres cruéis, investem sobre meu corpo delgado aos
atropelos. Grito desesperado com fúria e dor. Filhos da puta. Acordo
suado às nove da manhã. Ainda sinto sono, mas não consigo mais
dormir.
Jogo uma água no corpo e saio para caminhar um pouco pela rua. Está
frio, a garoa é quase um vapor fresco que chicoteia nossa face e vou
seguindo resoluto. Gosto de pensar caminhando. Queria contar esse
sonho para uma amiga psicanalista, mas ela vai me falar de Freud e
eu odeio quando me falam de Freud como se esse desgraçado tivesse
desenvolvido teorias sobre tudo e, assim, há explicação racional pra
tudo. Foda-se. Também não entendo uma coisa que deveria ser
igualmente estudada. Por que, afinal, tantas mulheres são
psicanalistas? Talvez por não terem tantas fantasias sacanas quanto
os homens. Não sei os outros, mas eu tenho uma infinidade de
fantasias libidinosas que muitas vezes me fazem crer que sou um ser
abjeto, ao menos sob uma análise mais sexual. Houve um tempo em que
amei uma garota e adorava transar com ela imaginando-a fodendo com
algum sujeito irreal. Porém tinha um baita ciúmes dela. Com certeza
Freud também explicaria tudo isso. E é por isso mesmo que o odeio
tanto. Não suportaria ter minhas fantasias explicadas uma vez que,
desse modo, elas deixariam de ser fantasias e eu gosto delas assim
como são. O frio paulistano é o melhor dos frios. Muito melhor que o
europeu, pois aqui em vez da viadagem da neve tem garoa que é capaz
de transformar 10 graus centígrados em genuínas temperaturas
negativas. O frio me dá muito tesão, mas gosto dele apenas durante
noventa dias. Depois, bem depois os trópicos cuidam de esquentar o
clima e daí é a vez das mulheres sentirem o tesão fluir vigoroso por
todos os seus indômitos poros.
Sigo caminhando, e não há nada de interessante nas ruas da
periferia. Com esse clima nem mesmo os cães vagabundos fazem sua
ronda rotineira. Gosto de observar os cães urbanos perambulando
pelos becos. De alguma maneira somos muito parecidos. Os cães
vagabundos parecem lobos solitários e andam esfarrapados pelas ruas
do mesmo jeito que seus ancestrais lobos percorriam as pradarias,
com aquele mesmo olhar sábio e solidário, mas sempre pronto para
qualquer combate. Eles farejam o cio das fêmeas, os alimentos e
também o medo ou a coragem de seus oponentes. Talvez por isso mesmo
se tornaram grandes companheiros dos homens. Não caminho por muito
tempo e volto para um café na padaria. A gorda furiosa está lá, mas
nunca guarda rancores. Ou, quem sabe, nem se importa e como puta
suporta um idiota como eu apenas para defender sua renda do dia. Ela
me serve chocolate e pão na chapa com manteiga. Mesmo não gostando
muito de mim se esforça um pouco para parecer simpática. E diante de
tudo isso eu me sinto poderoso com apenas três reais no bolso.
Começa a chover mais forte. O som batucado pelas gotas de água na
cobertura de zinco me traz idéias de um conto que eu bem que poderia
escrever. Bastaria pedir um papel e uma caneta para essa velha
cadela obesa e rabiscar um pequeno esboço, ou botar essas idéias no
papel e depois escrever freneticamente uma história. Mas não me
permito pedir favor a essa mulher. Quero ser um pouco esnobe e
ignorá-la por completo. A história me foge completamente quando fixo
meus olhos naquelas tetas imensas repousadas sobre uma barriga
bojuda e gelatinosa. Ela se move, lava copos, vai de um lado a
outro, e toda aquela massa espetacular permanece imóvel. Fico
observando-a atentamente e imaginando como seria essa mulher fodendo
de quatro. E acho que isso a irrita. “Deseja mais alguma coisa?”, me
pergunta com uma cara pouco cordial. Ela tem essa cara
demasiadamente quadrada e de um rosado desbotado e sinto vontade de
rir. Mas apenas pago os três reais e vou embora sob a chuva que
aperta com meus passos apressados. Em casa, depois de seco, me boto
em frente ao computador. Fico ali olhando a tela branca brilhando e
me intimido. Os teclados riem de mim ou apenas das cócegas que meus
dedos fazem neles. As palavras surgem e me dou conta que escrevi
mais que uma frase, e depois outra, e outra e enfim quatro
parágrafos longos. Agora sou eu que encaro o monitor salpicado de
letras negras formando quatro grandes blocos. Venci o páreo de hoje
com ele. Salvo tudo e me levanto com essa agradável sensação de
vitória. Cheio de júbilo e confiante, sinto vontade de ligar para a
analista, nutro uma grande atração por ela, queria reunir toda
coragem e dizer a ela o quanto sinto vontade de beijá-la e amá-la.
Não sei direito o que é isso. Resolvo então escrever um e.mail e
apenas contar meu sonho. Ela vai citar Freud, eu já sei, mas
foda-se, ao menos tenho um assunto a tratar com ela. Acendo um
baseado e começo a escrever o e.mail: “Minha querida Lady Jane, tive
um sonho insólito esta noite”.


Escrito por Mauro Cassane

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